Onisciência X Livre Arbítrio: Uma contradição? (Análise e Refutação)

by - agosto 30, 2013

  Onisciência X Livre Arbítrio

Basicamente é este o suposto dilema: "Se Deus sabe antes que eu vou fazer algo, então eu não tomei a decisão de fazer esse algo livremente." Portanto, onisciência entraria em conflito com livre-arbítrio. Para discutir esse problema, alguns pontos devem estar pré estabelecidos. De forma fundamental, nós precisamos esclarecer três pontos para que possamos realizar uma análise minuciosa e completa:

O que é a onisciência, o que é uma ação livre e qual é a nossa visão da relação de Deus e o tempo.


Em primeiro lugar, vamos com a onisciência. Podemos defini-la da seguinte maneira:

1- O: Uma pessoa X é onisciente somente se X sabe toda e qualquer verdade.

Talvez essa não seja a definição atual de onisciência, mas é útil para o trabalho e vamos utilizá-la. Podemos trabalhar com uma definição de ato livre como em:

2- Um ato é livre se não é suficientemente causado por nenhum agente externo ao agente.

Novamente, talvez esta não seja a versão definitiva do termo, mas nos dá uma base para prosseguir. Se sou EU que decido sair para jantar (e não um conjunto de leis da natureza externas sobre as quais eu não tenho nenhum poder que determinaram meu agir), então meu ato foi livre. Na Filosofia do Tempo, as coisas nunca foram exatamente muito claras. Assim, era de se esperar que a relação de Deus com o tempo também não fosse das mais evidentes. Isso levou a algumas polêmicas entre os filósofos teístas e algumas posições diferentes emergiram, historicamente, dessas disputas. Basicamente, temos três modelos de relação de Deus com o tempo, que seriam:

(1) Deus é atemporal.

(2) Deus é atemporal (contingentemente), depois temporal.

(3) Deus é eterno e temporal.


A primeira visão é defendida por Tomás de Aquino. A segunda é defendida por William Lane Craig e a terceira é defendida por filósofos como Richard Swinburne. Notei que os leitores do blog normalmente pensam em Deus como atemporal de uma forma definitiva.  Mas isso não é consensual, sendo disputa de vários argumentos. Richard Swinburne dá uma pincelada da seguinte maneira sobre essa questão em um dos seuspapers:

"Deus como atemporal tem sido a visão teológica dominante de pelo menos a partir do quarto século. No entanto, a meu ver, os autores bíblicos pensam em Deus como eterno e a eternidade de Deus não foi objeto de definição dogmática. O conhecido livro de Nelson Pike “God e Timelessness” (London: Routledge e Kegan Paul, 1970) termina com a observação de que ele não foi capaz de “encontrar qualquer base para [a doutrina da atemporalidade divina] na literatura bíblica ou na literatura confessional de qualquer das Igrejas, seja Católica ou Protestante." (Richard Swinburne, God as The Simplest Explanation of The Universe)

Todas as visões são plausíveis, embora obviamente só uma esteja correta. Meu ponto, hoje, não é discutir qual dessas visões é a certa, somente vou focar no tema principal do post, falando sobre as alternativas e deixando você, leitor, pensar qual é a melhor. Na visão (1), atemporalista, não faz sequer sentido dizer que se Deus acreditava “antes”, pois para Deus não haveria antes e depois. No atemporalismo, Deus viveria num momento indiferenciado de momentos e instantes. Ele têm uma visão privilegiada, de onde ele vê todos os eventos que para nós constituem o “presente” de uma vez só. Como diz Aquino na Suma Teológica:

“Deus vê as coisas tudo de uma vez só, não sucessivamente”.

Assim, quando Deus sabe que eu estou escrevendo esse post, é porque ele vê no meu presente que eu estou escrevendo esse post(ou que eu estou sentado). E a necessidade de estar sentado não é a necessidade de um objeto necessariamente ter que estar sentado, mas sim a necessidade de tudo que está sentado, está sentado. Mas talvez alguém não seja um atemporalista, como Aquino, talvez ele seja mais como Craig e Swinburne e acredite que Deus está relacionado com o tempo de uma maneira similar a que nós estamos. Pode essa pessoa arranjar uma solução para o problema do post? Ao que tudo indica, sim. Há duas soluções. Lembre-se, primeiro, da nossa definição de onisciência:

1- Uma pessoa S é onisciente somente se S sabe toda e qualquer verdade.

Isso é a mesma coisa que, basicamente, dizer que para toda proposição P, Deus sabe se P é verdade ou não. Mas futuros eventos contingentes não possuiriam valor de verdade. Pense um pouco: hoje, não seria nem verdade nem mentira a frase “(A) Eu vou aceitar um comentário amanhã”. A verdade depende de COMO eu vou agir amanhã, e só vira verdade ou não no FUTURO. Então, Deus não pode acreditar hoje que (A) é verdade, pois Deus só acredita em verdades e só vai ser verdade ou não no momento em que eu tomar essa decisão no dia de amanhã. Como observou Peter Van Inwagen, isso não diminui a onisciência de Deus, pois não é possível para um ser saber proposições que não têm valor de verdade. Ele ainda seria metafisicamente o maior ser possível com o maior conhecimento possível dentre tudo. Então Deus novamente não acredita “antes” que eu vou tomar uma decisão tal no futuro.

Existe uma segunda alternativa na visão temporalista. Nela, trabalhamos com a noção de mundos possíveis. A ideia básica de um mundo possível é um modo como as coisas poderiam ter sido. É uma descrição completa ou máxima da uma mundo. Nesse modelo, Deus teria aquilo que se chama de conhecimento médio das ações livres das criaturas. Sabendo de todas as circunstâncias, Deus saberia como uma pessoa S iria livremente escolher entre as opções disponíveis estando em um mundo possível. Algo como:

(P): Se uma pessoa X estivesse na circunstância C, então X livremente escolheria D.

Percebam que (P) tem valor de verdade. Portanto, Deus sabe disso.

Pensando em um exemplo:

(A): Se Raquel estivesse na circunstância C, então Raquel livremente aceitaria a proposta de casamento de Rafael.

A circunstância C engloba toda a descrição de um mundo possível. Claro que C também possui vários detalhamentos, como:

(1) Raquel desejava, no momento da proposta, casar com Rafael.

(2) Os pais de Raquel adoram Rafael.

(3) Rafael possui um bom emprego.

(4) Rafael nunca tratou mal Raquel.

(5) Raquel deseja ter filhos e considera que Rafael seria um bom pai.

(6) Etc.


E o fato de Deus saber qual seria a decisão livre de Raquel impede que essa decisão seja livre? Isto é,  que tenha sido tomada por Raquel? Não é o caso. Liberdade não é a mesma coisa que impredictibilidade. É logicamente possível que alguém seja capaz de prever ações livres. Somente perderíamos a liberdade se a crença de Deus fosse causalmente determinante da ação, mas é justamente o contrário. A relação da crença de Deus com Raquel é no máximo uma relação semântica. É Raquel, quem ela é, como ela toma suas decisões, entre outras coisas, que causa a crença de Deus e não o inverso. A melhor exemplificação para aniquilar de vez com a "suposta contradição" entre livre arbítrio e onisciência segue logo abaixo:

Imaginemos uma situação hipotética onde você é um jogador de futebol que irá cobrar uma penalidade. No gol há um goleiro muito bom que SEMPRE acerta o canto no pênalti. Você sempre vai escolher livremente o canto que irá cobrar a penalidade e o goleiro sempre terá o palpite certo, ou seja, ele sempre irá agarrar a bola. Mas isso não significa que ele determinou o canto ao pular. Não foi ele que determinou o canto, ele somente adivinhou muito bem. O pulo do goleiro não determina a ação livre do batedor, que é você.


Conclusão e considerações finais:

Existem outras soluções, mas preferi comentar só essas três, senão o post iria ficar muito grande. Enfim, deve-se escolher um modelo e avaliar sua coerência. Mas a conjunção de “Deus é onisciente” e “Algumas criaturas fazem atos livres”, de acordo com as explicações, está de pé, o que demonstra que não há absolutamente nenhuma contradição entre livre arbítrio e onisciência. No MEU ponto de vista, creio que a definição do último exemplo seja a mais coerente. Sugiro que utilizem o último exemplo para possíveis refutações, pois é a perfeita demonstração da total compatibilidade entre livre arbítrio e onisciência.

Referências:

[1] https://projetoquebrandooencantodoneoateismo.wordpress.com/outras-postagens/

[2] Richard Swinburne, God as The Simplest Explanation of The Universe

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19 comentários

  1. Certa vez, um amigo calvinista meu me questionou a respeito de Jesus e Pedro (Sobre a negação tripla), sabe? Ele reivindicou que como Jesus era onisciente e sabia que Pedro faria tal ato (Pelo que sei, foi até profetizado), Jesus determinou a ação de Pedro, não havendo, portanto, liberdade de escolha por parte de Pedro. Como procedi? Disse que ele cometeu afirmação do consequente, está certo, Andrei Santos?

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    1. Não houve interferência alguma nas ações de Pedro, porque antes de ele realizar o ato, o mesmo não era tido como VERDADE. É uma questão cronológica. Deus é onisciente porque conhece toda e qualquer VERDADE. O exemplo que eu me referia era o seguinte: imagine que você vai cobrar uma penalidade e o goleiro te diz: você não vai marcar o gol, pois eu vou defender. Nesse cenário, podemos imaginar que Deus é o goleiro. O fato dele saber toda e qualquer verdade não interfere na sua escolha acerca do canto que vai chutar a bola. Deus, por ser onisciente, vai sempre acertar o canto que você escolher, não importando se mudar de última hora, pois uma verdade só se torna verdadeira no instante inicial de sua execução. É justamente na ponte entre a intenção e a execução de um determinado ato. Ora, se você escolher qualquer canto para chutar e Deus agarrar a bola, ele interferiu na sua escolha? Evidentemente, não.

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    2. Ah, agora entendi.

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    3. http://criticanarede.com/presciencia.html

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  2. Mesmo que essa objeção fosse verdadeira logicamente, não excluiria a existência de um criador, por mais que ele nos tratasse como marionetes, mas posso questionar essa afirmação, portanto, eu teria boas razões que sou capaz de avaliar minhas próprias faculdades mentais, fora minha fisiologia.

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    1. Era só dizer que não há qualquer relação entre saber toda e qualquer verdade x com impedir uma ação y. O exemplo da cobrança de penalidade, dado aqui no texto, exemplifica muito bem essa questão.

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    2. Onisciência significa aptidão para saber todo o futuro e não conhecimento total a respeito do futuro?

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    3. Onisciência significa a capacidade de saber toda e qualquer verdade. Pelo menos essa é a definição que eu adoto em debates.

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    4. http://m.youtube.com/watch?v=a5ts7gzs6Nc

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  3. Um ser verdadeiramente onisciente sabe tudo o que vai ocorrer no futuro, portanto, seu conhecimento é infalível. Se for verdadeiramente onisciente, este ser saberá de antecedência as decisões tomadas por certos agentes.
    Todas as decisões já foram tomadas antecipadamente no conhecimento supremo do ser.
    Ninguém pode livremente fazer algo, portanto, pois antecipadamente o ser verdadeiramente onisciente é causa da ação do agente que é mero resultado, logo, liberdade e onisciência são mutuamente excludentes.

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    1. O que o cristianismo tem a dizer sobre isso, Andrei Santos?

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    2. Um ser verdadeiramente onisciente conhece toda e qualquer verdade. Conhece todas os mundos possíveis onde alguém realiza uma ação x. Entretanto, como o exemplo do pênalti nos mostra, não há qualquer contradição entre liberdade e onisciência: Deus, por ser onipotente, conhece todos os mundos possíveis onde o batedor chutaria a bola, sendo cada mundo um alvo no gol. Quando o indivíduo escolher executar a ação, o mundo possível correspondente se tornará verdade, e Deus, consequentemente, acertará o canto que o batedor irá escolher e agarrará a bola. Perceba que a onisciência de Deus em momento algum interfere na escolha do canto. Essa é a chave do entendimento.

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  4. Deus é dono de toda a ação que acontece ou vai acontecer. A sua consciência sabe de tudo, todo o destino. O misterio de Deus é que ele é responsavel por tudo, e todo acontecimento tem uma causa e motivo que foge o raciocinio humano.Usando a Bíblia como um exemplo: Deus sabia que o anjo Lúcifer se tornaria Satanás, adiministrador do mal, assim como deixou a árvore da ciência do bem e do mal sem segurança e determinou uma lei a ser cumprida, não comecem do seu fruto pois morreriam. A lógica é que Deus plenejou tudo para ser assim, como mandou seu filho, Jesus para mostrar o bem.

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    1. Aqui, eu já discordo em grande parte. Eu acredito que Deus conheça toda e qualquer verdade. Esta é a definição que eu utilizo. A onisciência de Deus não implica em determinação ou quebra do livre-arbítrio, em minha concepção. Deus sabia de tudo o que iria acontecer? Sim. Deus poderia interferir em todos os níveis (todos, não apenas em alguns) de uma ação livre? Não, haja vista que Deus, um ser onipotente (a capacidade de fazer tudo aquilo que é logicamente concebível) não pode conceder a liberdade e, ao mesmo tempo, retirá-la. Isso é uma inconsistência lógica.

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  5. O livre-arbítrio é uma ilusão, temos vários caminhos a seguir, alguns o caminho do mal, outros o do bem, mais todos Deus já sabe. Somos limitados por necessidades biologicas como alimento, oxigênio e também pela morte.O que acontece é que até nossa força de vontade para proseguir na vida é dada por Deus. Exemplo da Biblia onde o destino de Moisés foi conduzido antes do seus nascimento para se tornar o libertador dos hebreus.

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    1. E onde onisciência implica em perda de liberdade? Imagine que um jogador vai cobrar uma penalidade e que Deus é o goleiro. Deus, por ser onisciente, sempre irá saber onde você vai chutar a bola, logo ele irar agarrá-la. No entanto, o fato de ele saber o canto que você vai chutar não quer dizer que ele interferiu na sua escolha acerca do canto. Por fim, níveis de liberdade não implica em ausência de liberdade, tal como você elucidou nas necessidades biológicas.

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  6. Deus sendo o goleiro, nunca vou ganhar dele, antes mesmo de meu pensamento ele acertará o canto, isto quer dizer que Deus nunca perde, não adianta o que faça, somos limitados, e no final ele sempre ganha. Imagine um jogo de estratégia com a humanidade que são conduzidos com algumas chances para enganar o adversário, faze-lo pensar que esta ganhado, iludindo-o com algumas perdas, mais que no final só existe um ganhador inteligente que já sabia das jogadas muito antes. Eu acredito em destino, em que cada pessoa segue durante a vida, ela escolhe, mais até a escolha faz parte do destino.

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    1. Sim, Deus nunca errará o pênalti. No entanto, o fato de ele saber toda e qualquer verdade não interfere de maneira alguma na sua liberdade de escolha do canto em que irá chutar. Essa é a questão.

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