Evolução Biológica: Pressupostos Filosóficos [Parte 2]

by - fevereiro 11, 2015


Pressupostos Filosóficos da Evolução Biológica


 "A humildade é o primeiro degrau para a sabedoria."

Santo Tomás de Aquino.


Introdução

     O homem é parte da natureza e, como tal, está sujeito a todas as suas leis. Ele é apenas uma das múltiplas criaturas que existem na terra, e não pode ser compreendido em sua própria essência nem procurar orientar seu destino com sabedoria, sem que seja levado em conta o padrão geral da vida e tudo aquilo que a ordena. O que se pode perceber é que, na natureza, há um padrão. A diversidade das criaturas existentes na mesma não é completa e tampouco aleatória. Todos os seres vivos compartilham de muitas características e, acima desse nível básico, notamos a existência de grupos com todos os graus de semelhança, desde uma quase identidade até uma grande diversidade. Há, ou parece haver, uma ordem ou plano essencial entre as formas de vida, a despeito da sua grande multiplicidade. Além disso, parece haver um objetivo nesse plano.

     As semelhanças e diferenças existentes entre um peixe, uma ave um homem são significativas. As semelhanças os adaptam àquelas condições e funções que todos têm em comum, e as diferenças, as peculiaridades de seus modos de vida não compartilhados com os outros. Um telescópio, um telefone ou uma máquina de escrever é um mecanismo complexo, que serve a uma função particular. Evidentemente, quem os fabricou tinha um fim em vista, e a máquina foi idealizada e construída com esse objetivo. Um olho, um ouvido ou um membro como a mão, também é um mecanismo complexo, que desempenha uma função particular. Eles também dão a impressão de que foram criados com um objetivo. Essa aparência de intencionalidade está em toda a natureza, como a estrutura geral dos animais e plantas, o mecanismo de seus vários órgãos e o dar-e-tomar das suas relações recíprocas. Explicar essa aparente intencionalidade é um problema fundamental para qualquer sistema filosófico ou científico. As tentativas de resolver este problema talvez sejam tão velhas quanto a humanidade.
     Tal problema aparece repetidas vezes, numa forma requintada, entre as filosofias gregas, nas escrituras de todas as grandes religiões e em outras antigas tentativas de achar uma explicação para a natureza do universo e do homem.

O problema da Natureza do Universo e do Homem


     Uma solução possível, que antigamente se tornou tradicional no pensamento e na religião ocidentais, foi primorosamente apresentada nos Bridgewater Treatises, publicados em 1833-40. Esses tratados, dos quais saíram oito, receberam uma rica dotação sob os auspícios do oitavo conde de Bridgewater, que deu instruções para que eles promulgassem:



"(...) O poder, a Sabedoria e a Bondade de Deus tal como se manifestam na Criação; ilustrando essa obra com todos os argumentos razoáveis, como por exemplo a variedade e constituição das criaturas de Deus (...) a estrutura da mão humana, e uma infinita variedade de outras demonstrações."



     Embora de valor desigual, muitos desses ensaios ainda podem ser lidos com prazer e, na verdade, com proveito. Os melhores deles eram trabalhos de valor científico e influenciaram fortemente o pensamento da época. (Interessantemente, embora os Bridgewater Treatises fossem, por definição, anti-evolucionistas, uma citação de um deles aparece no começo da obra de Darwin, A origem das espécies).
     Em meio a inúmeras tentativas de promover uma explicação razoável para um propósito na evolução, biólogos modernos divagaram acerca do referido tema com propriedade, mas se pretendemos ir além da mera observação do curso da evolução e adquirir certa compreensão a respeito de como e por que a natureza seguiu esse curso, então, mais uma vez, teremos que considerar a aparente finalidade e o fracasso nas tentativas de promover uma explicação.
     O que buscamos, na realidade, é uma hipótese plausível quanto ao mecanismo da evolução. Não é de admirar que tanto Lamarck como Darwin, cujas ideias dominaram quase por completo a discussão subsequente da teoria evolucionista, estivessem pelo menos tão preocupados em descobrir um mecanismo evolutivo para a adaptação ou um propósito para o mesmo quanto estavam em demonstrar a própria realidade da evolução. Os pontos de vista de Lamarck foram tão deturpados pelas teorias que, apesar de muito diferentes, foram chamadas de neolamarckistas pelos testas-de-ferro instigados pelos anti-lamarckistas ou pela simples incúria e esquecimento, que é útil retomar as suas ideias. 

Lamarck e Darwin

     A teoria de Lamarck abrange, em sua totalidade, cinco pontos principais, que podem ser formulados da maneira que se segue, nas suas próprias palavras (traduzidas e dispostas em outra ordem):


1. A natureza, ao produzir sucessivamente todas as espécies de animais, a começar pelos mais imperfeitos ou mais simples e terminando pelo mais perfeito, gradualmente complicou a organização deles.

2. Se a causa que tende invariavelmente a complicar essa organização fosse a única a influenciar as formas e órgãos dos animais, a complicação crescente seria, em sua sequência, perfeitamente regular em toda parte. Mas esse não é o caso. A natureza é forçada a submeter suas obras às influências do ambiente, que age sobre elas, e de todos os lados o ambiente provoca variações nos produtos da natureza.

3. Qualquer que seja o ambiente, ele não ocasiona diretamente nenhuma modificação na forma ou organização dos animais, mas grandes transformações no ambiente provocam grandes alterações nas necessidades dos animais e essas alterações nas suas necessidades fatalmente provocam mudança nas suas ações. Ora, se as novas necessidades se tornam constantes ou persistem por muito tempo, os animais adquirem novos hábitos, que são tão persistentes quanto as necessidades que lhes deram origem.

4. Primeira lei. - Em qualquer animal que não ultrapassou ainda o limite da sua evolução, o uso mais frequente e prolongado de um órgão gradualmente fortalece esse órgão, desenvolve-o, aumenta-o, dando-lhe um vigor proporcional à duração desse uso, enquanto que o constante desuso gradualmente o atrofia, deteriora e progressivamente diminui suas capacidades, acabando por conduzi-lo ao desaparecimento.

5. Segunda Lei. - Tudo aquilo que a natureza levou os indivíduos a adquirir ou a perder sob a influência do ambiente ao qual sua raça esteve exposta durante muito tempo e, consequentemente, sob a influência do uso predominante de um órgão ou de um constante desuso de uma parte, a natureza conserva pela transmissão hereditária aos novos indivíduos que nascem, desde que essas modificações adquiridas sejam comuns a ambos os sexos, ou seja, aos progenitores dos novos indivíduos.



     O próprio fato de Lamarck haver denominado esses dois últimos postulados de "primeira lei" e "segunda lei" contribuiu para obscurecer o fato de que eles não constituem a parte essencial da sua teoria mas, ao contrário, foram introduzidos para explicar o que ele considerava como irregularidades ou perturbações no curso normal da evolução. Na terminologia mais recente, Lamarck acreditava que adaptações especiais ou locais eram distúrbios nesta progressão, distúrbios esses causados pelas mudanças ambientais e consequentes mudanças no uso e desuso de órgãos, cujos efeitos adquiridos eram hereditários.
     A maioria dos neolamarckistas rejeitaram ou esqueceram, propositalmente ou não, a parte essencial da teoria de Lamarck e defenderam uma teoria geral da evolução baseada nas duas "leis", que, para Lamarck, visavam apenas explicar as exceções ao curso normal da evolução. Muitos neolamarckistas também postularam os efeitos diretos do ambiente sobre os organismos, o que foi categoricamente negado por Lamarck. Embora eu tenha sumariado toda a teoria de Lamark, tentando reconstruir a exatidão histórica, também são principalmente sua primeira e segunda leis que nos interessam no momento.
     Sem usar o termo, Lamarck aceitou a finalidade da evolução, mas reduziu-a a termos evolutivos e mecaniscistas equiparando a finalidade com as necessidades dos animais individuais e seus esforços para satisfazer a essas necessidades. A girafa se tornou um exemplo clássico, à força de ser repetido pelo próprio Lamarck e depois por Darwin, em contexto diferente. A "finalidade" do pescoço da girafa é alcançar as folhas e rebentos mais altos das árvores como alimento. Segundo Lamarck, as girafas ancestrais esticavam o pescoço na tentativa de atingir este alimento - comportamento intencional desses animais. Com o tempo, em virtude da longa repetição, seus pescoços se tornaram compridos, transmitiram-se desta forma aos seus descendentes, e esse processo continuou durante muitas gerações até que culminou nos longos pescoços das girafas atuais.
     Embora esta teoria seja bastante sedutora, é falsa. O Lamarckismo pressupõe que os efeitos do uso e do desuso, ou outros caracteres adquiridos, sejam hereditários, e que sejam herdados em espécie, tornando-se germinalmente fixos. Isto é, o Lamarckismo pressupõe não apenas que as modificações adquiridas durante a vida dos pais afetem os filhos, como também que elas afetem as mesmas partes dos descendentes da mesma forma que nos genitores e que possam, cedo ou tarde, tornar-se uma parte fixa da hereditariedade na linha de descendentes, independentemente de fatores modificadores, novos ou repetidos. Foi provado, tanto quanto um fato negativo pode ser provado, que isto não ocorre e nem pode ocorrer. Ainda assim, existem certas adaptações, como as das fêmeas neutras dos insetos e muitos casos de coloração protetora ou mimetismo, para os quais uma explicação lamarckista é praticamente inconcebível. Exatamente por isso, não podemos, hoje, adotar a explicação de Lamarck da aparente finalidade existente na natureza, embora desejássemos adotá-la.
     Por outro lado, Darwin apresentou o caso da evolução como um princípio geral na história da vida, e o fez de maneira tão convincente que este foi o fator que mais influiu na subsequente aceitação universal deste princípio. Darwin, porém, reconheceu que a teoria da evolução estava longe de ser nova e, como o título de sua obra o indica, ela não constituía, por si mesma, o seu objetivo primordial.
     A origem das espécies também apresenta uma explicação ampla, embora incompleta, da maneira pela qual a evolução opera. Numa breve paráfrase, esta explicação é a seguinte: Os organismos variam; algumas (pelo menos) dessas variações são hereditárias; dentro de um dado grupo, alguns indivíduos têm mais descendentes do que os outros; as variações hereditárias desses indivíduos são, portanto, mais comuns nas gerações seguintes, que tendem a evoluir na direção dessas variações. Embora esse mecanismo particular não atue em todos os casos de mudança evolutiva, é sem dúvida um dos mecanismos mais comuns desta mudança.
     Darwin não acreditava que a seleção natural bastasse para explicar toda a evolução, nem mesmo a adaptação. Alguns estudiosos insistiram no fato de que ele não excluía a possibilidade da herança dos efeitos no uso e do desuso, à maneira de Lamarck. Todavia, não se deve atribuir a esse ponto um valor excessivo. Darwin era bastante bem informado para perceber que havia partes do processo evolutivo ainda misteriosas, e bastante prudente para não excluir completamente qualquer fator suplementar que não pudesse, nesse caso, ser refutado. Atribuía apenas um papel indeterminado e bastante secundário aos efeitos do uso e do desuso e mostrou que alguns exemplos apontados (como o do pescoço da girafa) podiam ser melhor explicados pela seleção natural.


Objeções e o Problema da Evolução Linear

     Conforme Darwin previu, de seu trabalho resultou a rejeição da criação especial como teoria científica. Por outro lado, deve-se mencionar que a exegese bíblica posterior não encontrou dificuldade alguma em aceitar a evolução, de preferencia à criação especial, como o método divino da criação e que não há oposição alguma entre os evolucionistas racionalistas e os teólogos racionalistas. Embora Darwin tenha demonstrado com maior êxito que Lamarck, a possibilidade de uma resposta evolutiva ao argumento teológico da existência de uma intenção na natureza, há ainda brechas graves. Uma das principais linhas de ataque a essas brechas é que a seleção natural, tal como proposta por Darwin e seus sucessores, era um processo puramente negativo, isto é, destruía, mas não criava. Eliminava variações desvantajosas, mas nada dizia a respeito da origem das variações vantajosas e, portanto, não explicava como surge a adaptação.

     Essa objeção, consequentemente, acabou por desacreditar toda a escola darwinista. Também se afirmava que caracteres destinados a se tornar adaptativos não são, muitas vezes, de nenhuma utilidade real quando surgem e, consequentemente, não são favorecidos pela seleção, e todavia persistem e se tornam adaptações úteis. Nenhuma dessas últimas objeções provou ser "a palavra final", mas houve uma, levantada pelos paleontólogos, que se revelou bastante grave e comprometedora. Depois de estudar numerosas linhagens de fósseis, muitos paleontólogos concluíram que a evolução tendia a ser processar em linhas retas, que a direção evolutiva dessas linhas não sofria desvios mesmo quando não apresentava nenhuma vantagem adaptativa (evidente), que ela podia mesmo ser contrária à adaptação, e que uma tendência de início adaptativa podia se prolongar a tal ponto, que se tornava inadaptativa e, talvez, fatalmente prejudicial.
     Foram objeções como estas que levaram muitos estudiosos a acreditar que as tentativas mecanicistas de interpretação da evolução, e particularmente da adaptação, haviam fracassado e eram fadadas a esse fracasso. Se os caracteres surgem independentemente de sua significação adaptativa e, apesar disso, vêm a satisfazer, na maioria das vezes, uma necessidade, se não aparecem ao acaso mas numa progressão regular, ou se progridem francamente em linhas retas como se tivessem uma meta a atingir - então, pensava-se, deve haver alguma força orientadora que controla a evolução, possivelmente uma força intencional, mas essa força não pode ser encontrada no ambiente ou nas leis físicas da natureza. Deve ser ou uma força peculiar à vida e, nesse sentido, não-física, ou deve residir em algum plano sobrenatural ou, pelo menos, extranatural.

Evolução Dirigida

     Essa força foi repetidamente postulada por estudiosos decepcionados tanto com o darwinismo como com o lamarckismo. Driesch chamou-a de "enteléquia"; Bergson denominou-a "élan vital"; Osborn deu-lhe o nome de "aristogênese" (entre outros); Teilhard a designou por "noogênese". Outros nomes lhe foram dados, e alguns autores se contentaram em postular a sua existência, sem batizá-la. Inacreditavelmente, os aspectos apresentados acima coincidem perfeitamente com a interpretação metafórica do livro de Gênesis feita por Santo Agostinho no século IV. Ele foi pioneiro no que concerne à ideia crua de evolução. Sua interpretação é, no mínimo digna de respeito, ainda mais se considerarmos o tempo em que foi escrita (muito antes do florescimento da ciência, diga-se de passagem). Evidentemente, seria um erro rejeitar simplesmente esses pontos de vista com um sorriso ou ridicularizações. Seus proponentes foram (e ainda o são) estudiosos eméritos e idôneos. Vale ressaltar que, devido ao rigor filosófico o qual as premissas são balizadas, fazem da teoria da evolução dirigida altamente plausível, inclusive sendo partilhada por muitos evolucionistas (como o Dr. Francis Collins, diretor do projeto Genoma Humano), que, todavia, procuram descobrir as leis mecanicistas no sentido de uma promulgação divina das leis naturais da evolução. Esta ideia, porém, foge ao escopo da ciência, passando a ser objeto de estudo da filosofia.

     Broom, por exemplo, afirmava que existe "um poder sobrenatural que planejou e orientou a evolução" e que, abaixo desse poder, existem outras agências espirituais, algumas boas e outras más, que, por sua vez, orientam agências espirituais inferiores "parcialmente inteligentes" e diretamente associadas com os vários animais e plantas. Esses pontos de vista postulam que o elemento intencional da evolução envolve uma força que cai completamente fora da esfera da investigação científica. Podemos observar os efeitos dessa força, mas não podemos, nem precisamos, determinar como e porque ela produz esses efeitos. Na realidade, essas ideias são metafísicas e não científicas.
     Evidentemente, uma explicação poderia ser metafísica e, obviamente, ser verdadeira, porém, em ciência não se pode aceitar uma explicação metafísica quando é possível, ou pelo menos concebível, uma explicação física, ao menos que a explicação metafísica seja a melhor de todas elas. Nesse caso, seriamos forças pela racionalidade a aceitá-la. O próprio Osborn, no decorrer dos 22 anos que de então restaram de sua longa e fecunda existência, chegou a explicar a evolução como o resultado de um princípio organizador e orientador, que se negava a chamar de sobrenatural, mas para o qual não encontrou uma base ou explicação naturalista. Restava aos geneticistas e biólogos modernos apelar ao acaso.
     No que concerne à questão da natureza e origem das variações hereditárias, Lamarck encarava a atribulação de forma mais direta que a maioria dos estudiosos posteriores do século XIX e lhes pusera uma resposta, falsa, diga-se de passagem, conforme os geneticistas entre outros, o demonstraram cabalmente. Darwin simplesmente evitou a questão, o que gerou um sério defeito em sua teoria e provocou certa confusão entre seus seguidores e uma reação contra esse conceito durante a segunda metade do século retrasado.

O Problema da Adaptação

     A adaptação existe, e, assim sendo, existe finalidade na natureza, porém, somente se redefinirmos "finalidade" como o oposto de causalidade, como uma relação causal e não meramente acidental entre a estrutura e a função. Dessa forma, é possível explicar a finalidade do processo evolutivo sem necessariamente invocar um agente consciente com um fim em vista, mesmo que redefinir conceitos seja algo questionável. A negação desse fato constitui uma violência contra os mais elementares princípios do pensamento racional.
     Pensemos na improbabilidade de que uma estrutura como a mão, a combinação dos ossos, músculos, tendões, vasos sanguíneos e nervos tenham surgido por mero acaso ou por qualquer sucessão continua de acasos, excluindo-se o fato que uma sucessão de causas seja teoricamente impossível à luz da lógica (como demonstrou J.P. Moreland em A Racionalidade da Fé Cristã). Considere ainda, a inter-relação desses organismos, a dependência dos animais da fotossíntese das plantas, os grupos sociais de formigas, a fertilização das flores pelos insetos e uma infinidade de outras relações ecológicas adaptativas. Qualquer que seja a improbabilidade que se atribua à origem acidental dos mesmos, ela poderia ser multiplicada por muitos bilhões de vezes para expressar a improbabilidade de que a natureza como um todo seja o resultado de qualquer sequencia de eventos acidentais e fortuitos. Tem-se de concordar com Julian Huxley quando ele afirma que "para produzir esses tipos adaptados por uma recombinação ocasional (...) seria preciso uma soma total de organismos que superlotariam o universo e excederiam o tempo astronômico."

     Embora alguns geneticistas tenham sido, durante algum tempo, bastante ingênuos para se limitarem a negar a realidade do problema da adaptação, seria injusto sugerir que esta maneira de ver foi duradoura entre eles. A aceitação de mutações aleatórias como o mecanismo da mudança evolutiva e o fato de a adaptação - ou algo que se pareça de perto com ela - ser quase universal na natureza, levaram ao destaque de outro princípio evolutivo: o da pré-adaptação. A essência desse princípio é que peculiaridades estruturais ou fisiológicas, embora surgidas ao acaso, podem-se revelar vantajosas ou úteis no ambiente em que o organismo vive ou num outro ambiente acessível a ele. Por exemplo, animais que vivem em água doce podem, por mutação, tornar-se tolerantes à água salgada e então se propagar nos cursos de água salobra ou no mar porque, agora, isto se lhes torna possível. Trata-se de uma espécie de inversão do velho conceito de adaptação real ou aparentemente propositada, como, por exemplo, no sentido lamarckiano.


O Princípio da Pré-adaptação

     Esta é uma teoria curiosa e importante. Não há dúvida que a pré-adaptação realmente ocorre. Podemos notar que a pré-adaptação, com certa ampliação e modificação de seu significado, foi aceita como um dos fatores gerais da nova teoria sintética da evolução. Falando de maneira mais precisa, um tipo de pré-adaptação pode ocorrer quando a seleção se torna relativamente ineficaz e as frequências dos vários genes numa população tendem a oscilar, como se fosse a esmo, sem o controle definido da seleção. Este é o chamado efeito de Sewall Wright, segundo o nome de um dos mais eminentes co-fundadores da teoria sintética da evolução, que demonstrou que este efeito é mais provável em grupos pequenos e isolados de organismos. Na maioria dos casos, as mudanças produzidas dessa forma são indaptativas e em geral são o prelúdio da extinção, mas, ocasionalmente, são pré-adaptativas.

     Assim sendo, podem facilitar uma mudança relativamente abrupta e radical nos hábitos e no ambiente, mudança essa do tipo a que chamamos de "Evolução Quântica". *Por evolução quântica entende-se uma passagem, relativamente rápida, sob forte pressão seletiva, de um tipo de adaptação ao outro acentuadamente diverso. É provável que muitos dos novos tipos mais amplos e mais gerais de estrutura orgânica tenham surgido dessa forma. Provavelmente, esta seja a coisa que mais se aproxime de uma pré-adaptação inteiramente acidental. A estrutura da qual esses desenvolvimentos partem devia a sua integração à seleção (não-fortuita) e a nova categoria de estrutura deve, caso sobreviva, ser por sua vez integrada pela seleção, que agirá com especial intensidade sobre esses grupos.
     Outro tipo de pré-adaptação, provavelmente mais comum e talvez mais importante basicamente, surge, por exemplo, quando uma estrutura adaptativa seletivamente controlada se desenvolve a tal ponto, que se torna possível a sua utilização de maneira diferente. Por conseguinte, ela é pré-adaptativa em relação ao seu novo emprego, e a seleção orientará a evolução nesta nova direção se este novo emprego for vantajoso. Este tipo de pré-adaptação não é aleatório em momento algum. Tem sempre um ramo e é dirigido, mas esta direção muda. Estes fatos demonstram como a direção evolutiva pode mudar sob a influência da seleção, mesmo que o ambiente permaneça essencialmente constante.

Considerações Finais

     A adaptação pela seleção natural como um processo criador e as pré-adaptações nos sentidos especiais que acabamos de expor são as respostas da teoria sintética da evolução ao problema da existência de plano e finalidade da natureza. É evidente que muito resta ainda por fazer, muitos detalhes por completar e muitas partes do processo por serem compreendidas, mas eis aqui uma possível resposta ao problema da existência de plano e finalidade da natureza, mesmo que seja uma resposta simplista e subjetiva e ainda problemática, considerando-se um propósito universal e o problema dos valores morais objetivos.

     A adaptação existe, e é alcançada por um processo progressivo e que tem direção. Esse processo é natural e é completamente mecânico na sua atuação. Esse processo natural assumiu o aspecto de uma meta, sem a intervenção de um idealizador, e gerou um imenso plano, sem a ação cooperadora de um planejador, porém, é igualmente válido que o desencadeamento desse processo e as leis físicas sob as quais ele funciona tenham um planejador e que esta forma mecânica de realizar o plano seja o instrumento de que se vale este planejador. Todavia, dessa visão ainda mais profunda, não cabe ao cientista, enquanto cientista, tratar, porém, devemos reconhecer que a última visão, além de válida, nos fornece um objetivo real o qual continua a ser um mistério, talvez até insolúvel.

Bibliografia:

[1] CARTER, G. S. 1957. A Hundred Years of Evolution, Londres, Sidgwikc and Jackson.

[2] DARWIN, Charles. s. d. The Origin of Species, Nova York, Modern Library.

[3] HEBERER, Gerhard. 1958. "L'Hominisation: selection, adaptation ou orthogenèse", in Les processus de l'hominisation, Colloques internationaux du Centre National de la Recherche Scientifique. Sciences humaines, Paris, 179-89.

[4] JEPSEN, G. L., Ernst MAYR e G. G. SIMPSON (orgs.), 1949. Genetics, Paleontology, and Evolution, Princeton, Nova Jersey, Princeton University Press.

[5] HUXLEY, Julian. 1955. Evolution. The Modern Synthesis, Londres, George Allen & Unwin Ltd.

[6] SIMPSON, G. G. 1950a. Rythme et modalités de l'évolition, trad. do inglês por Pierre de Saint-Seine, Paris, Éditions Albin Michel. (Original: Tempo and Mode in Evolution, Nova York, Columbia University Press, 1944).

[7] C. ARAMBOURG e outros, Paléontologie et transformisme, Paris, Éditions Albin Michel, 123-63.

[8] 1953. The Major Features of Evolution, Nova York, Columbia University Press.

[9] 1962. O significado da evolução. Um estudo da história da vida e do seu sentido humano, trad. de Gioconda Mussolini, São Paulo, Editora Pioneira.

[10] 1964. "The Meaning of Taxonomic Statements", in S. L. WASHBURN (org.), Classification and Human Evolution, Londres, Methuen & Co. Ltd., 1-31.

[11] 1964. This View of Life, Nova York, Harcourt, Brace and World.

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21 comentários

  1. Amigo, andei dando uma bisbilhotada na net e, acabei por encontrar este sitio: https://sites.google.com/site/deusedarwin/kenmiller_1 recomendo-lhe que dê uma olhada, têm um bom material.

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  2. Muito interessante! Gostaria de vê-lo rebater alguns argumentos do senhor que escreveu essas coisas:

    http://www.ruckert.pro.br/blog/?p=4627

    http://wolfedler.blogspot.com.br/2009/11/problemas-da-crenca-crista.html

    http://wolfedler.blogspot.com.br/2010/02/o-nada-e-o-infinito_18.html

    http://wolfedler.blogspot.com.br/2010/08/proselitismo-ateista.html

    Digo isso porque considero absurdos alguns posicionamentos desse senhor, contudo, ainda não tenho o conhecimento necessário para tal.

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    1. Realmente incrível a posição deste senhor... Estes argumentos foram derrubados há séculos, refutá-los é perder tempo.

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    2. Porque o senhor em questão lida com ciência, e não com filosofia. Querer demonstrar a inexistência de Deus através da ciência é falácia metodológica. Tudo deve ser feito dentro da filosofia, e de filosofia ali eu infelizmente não vi nada.

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    3. Como a apologética cristã lida com as questões sobre a existência de demônios?

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    4. Aí já é com a demonologia, a qual constitui parte da teologia cristã. Não acredito que eu tenha preparo o suficiente para responder a estas questões, no entanto, recomendo a leitura dos escritos do Padre Paulo Ricardo. Ele dissertou extensamente sobre esses assuntos.

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    5. Obrigado. Eu sou cristão, mas não creio em nenhuma rebelião do capeta. Creio nas doutrinas da ressurreição e da afronta da humanidade perante Deus.

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    6. Anônimo de 19 de setembro de 2015 03:06.

      Então você escolhe quais doutrinas bíblicas crer? Qual seu critério para rejeitar determinadas proposições da Escritura? Baseado em que? Qual sua base epistemológica no que se refere as coisas espirituais?

      Vamos analisar os fatos. A segunda epístola de Paulo a Timóteo 3:16 diz que "TODA a Escritura é inspirada por Deus". O salmo 119:160 diz: "a tua Palavra é a Verdade desde o princípio" e o próprio Cristo diz em João 17:17 "Santifica-os na tua Verdade; a tua Palavra é a Verdade. "

      Isso é uma das bases da fé cristã e você alega professar essa fé. Acompanhe o raciocínio e não seja contraditório.

      Você alega crer na ressurreição e pecaminosidade humana e rejeita a rebelião de Satanás, contudo, ambas as proposições (ressurreição e queda de Satanás) provêm da mesma Fonte, a saber: a Palavra de Deus.

      Luc 10:17-18 "E voltaram os setenta com alegria, dizendo: Senhor, pelo teu nome, até os demônios se nos sujeitam. E disse-lhes: Eu via Satanás, como raio, cair do céu". (Afirmação feita pelo próprio Cristo)

      A Palavra diz em Apocalipse 12:9 “E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, que se chama o Diabo e Satanás, que engana todo o mundo; foi precipitado na terra, e os seus anjos foram precipitados com ele.”

      Apocalipse 12:7-9 diz: "Houve peleja no céu. Miguel e os seus anjos pelejaram contra o dragão. Também pelejaram o dragão e os seus anjos; todavia, não prevaleceram; nem mais se achou no céu o lugar deles. E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo, sim, foi atirado para a terra, e, com ele, os seus anjos".

      "Mas ai da terra e do mar, pois o Diabo desceu até vocês!" (Apocalipse 12:12).

      É impossível ser mais claro que isso. Jesus afirmou que a Escritura é verdadeira, logo, quando você rejeita determinada proposição bíblica, crendo não ser verdadeira, você chama descaradamente o Filho de Deus de mentiroso, cometendo, portanto, blasfêmia.

      Reveja sua fé. Estude Teologia. Aproveito essa oportunidade para exortá-lo a se arrepender e crer em toda a Escritura.

      A Paz de Cristo.

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    7. David Souza é você?

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    8. Anônimo de 24 de setembro de 2015 10:46

      Se estiver se referindo a mim (anônimo de 24 de setembro de 2015 07:44), meu nome não é esse. Vou facilitar nossa comunicação aqui, meu nome é Murillo.

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    9. Porque você responde parecidamente ao blogger do respostas ao Ateísmo

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    10. Kk talvez você tenha se confundido principalmente pelo " a Paz de Cristo" que eu desejei ao anônimo. Todavia, minha abordagem difere daquela empregada pelo David souza

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    11. Certo. E aí, está tudo bem?

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    12. https://m.facebook.com/bateutod/photos/a.650311675052657.1073741827.650293658387792/772821672801656/?type=3&source=48&_ft_=top_level_post_id.772821746134982%3Atl_objid.772821672801656&__tn__=E

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  3. Concordo. Na realidade percebo que muitos ateus nem sequer cogitam Deus não por ausência de evidência para tal, mas porque simplesmente não querem que Deus exista.

    Em tempo, por onde você estuda Andrei? Pretendo ler os livros do craig e do plantinga nos próximos meses, contudo ainda não acho suficiente. Alguma sugestão?

    abraços

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    1. UFF - Universidade Federal Fluminense. Com relação às leituras, indico Alister McGrath, J.P. Moreland (especialmente "A racionalidade da fé cristã"), Francis Collins, Antony Flew e Richard Swinburne. Abraços!

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    2. https://razaoteista.wordpress.com

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