O Dilema do Homem Moderno
É com essa célebre frase, proferida por um dos maiores
filósofos do absurdismo, que damos início ao diálogo sobre o dilema do homem
moderno. Ao longo de toda a história humana, o homem procurou incansavelmente
um sentido para a vida. Se a morte está de pé, com os braços abertos, ao final
da trilha da vida, qual é o seu objetivo? Que significado supremo pode nos ser
dado? Que importância real tem a nossa existência? Por que eu estou aqui? Quem
sou eu? A simplicidade aparente dessas questões, que comumente nos vem à cabeça
em momentos de reflexão ou solidão, nos engana.
Quando pensadas seriamente, nos deparamos com um abismo sem
fim. Muitos filósofos se atreveram a tentar respondê-las, mas apenas alguns
poucos, munidos de capacidade abstrativa, coragem e honestidade, conseguiram
alcançar as respostas. Até o século XVIII, a solução para todas essas questões
era uma só: Deus. É Ele quem está na linha de chegada da corrida da vida. É
escolhermos livremente conhecê-lo o objetivo final de nossas vidas. Há um significado
maior que aquele que atribuímos a nós mesmos. Somos moralmente importantes,
assim como nossas escolhas. Estamos aqui para usufruir do maior presente de
todos: a vida. Todos fomos cuidadosamente criados com nossas individualidades:
mente, cérebro, corpo, espírito e alma. Um conjunto de propriedades a quem
podemos chamar de "eu".
No entanto, tudo mudou radicalmente quando a "luz da
razão" caiu sobre a humanidade. Já no início do século XIX, o homem
moderno fez dela a arma para se libertar das amarras da religião. Ao
expulsarmos Deus do plano da existência, também nos livramos de tudo aquilo que
nos reprimia e coibia. Quando finalmente livres, pudemos saciar de todas as
maneiras os nossos desejos e anseios, tão reprimidos a tempos atrás sob a alcunha
do pecado. A razão havia vencido. Em meados do século XIX, com ares de
unanimidade, Nietzsche proclamou: Deus está morto. E com ele, todas as regras
que norteavam o comportamento humano. Não havia mais um legislador moral para
nos governar, um inferno ou pecados para nos amedrontar, um paraíso para que
possamos desfrutar, anjos para nos proteger ou um Messias para nos salvar. Não
havia mais ninguém olhando por nós. Finalmente, estávamos livres e sozinhos.
No final do século XIX, o Cristianismo e seus dogmas já
agonizavam em seu leito de morte. "A inquisição finalmente acabou! Deus
está morto!", bradavam os novos iluminados. No entanto, o século que
estava por vir nos mostrou que a liberdade tem um preço. Diante de milhões de
mortos, perseguições sistemáticas, estupros em massa, genocídios, do surgimento
de estados totalitários e de campanhas globais de morte, o homem se viu, não
mais desiludido com Deus, mas consigo mesmo. O Deus sangrento e vingativo do
Antigo Testamento já não parecia mais tão cruel, diante dos massacres humanos
auto perpetrados durante o século XX. Uma vez despojados do romancismo cristão
e de seus dogmas, nos vimos obrigados a lidar com os nossos próprios dramas,
sozinhos. Carentes de uma orientação, coube a nós a missão de condenarmos a nós
mesmos.
Éramos como crianças órfãs, completamente abandonadas no
mundo. Afinal, na ausência de uma autoridade competente para nos guiar pelo
caminho da moral, como, então, deveríamos nos comportar? A resposta não tardou:
como não havia mais um legislador moral, coube a nós, reles infantos, a criação
de nossos próprios códigos morais. Afinal, estavamos emancipados. No entanto,
todas as nossas regras eram baseadas nos nossos próprios gostos e opiniões
pessoais. A essa altura, novas questões surgiam: quem ou o que nos obriga a ser
moral? Por que devo agir moralmente? Quem ou o que nos confere legitimidade
enquanto autoridades morais?
Quando nos demos conta de que nossas opiniões e gostos
pessoais não são mais válidos que os de qualquer outra pessoa, finalmente
entendemos que nada mais nos obrigava a ser moral. Não tínhamos de obedecer a
ninguém além de nós mesmos. Não estávamos mais comprometidos a agir moralmente,
e nada nos conferia a legitimidade para dizer aos nossos iguais como deveriam
se comportar. Diferentemente do Deus deposto, não éramos autoridades morais
competentes, mas apenas regicidas ávidos pelo poder. Quietos, vimos então
nossas regras morais se dissolverem em um mar de opiniões e gostos pessoais. A
quietude deu lugar ao drama quando vimos desabar nossas verdades morais mais
sólidas. Uma vez que tudo passou a ser um mero ponto de vista, se tornou
impossível condenar nossos iguais. Éramos, então, como juízes sem um martelo.
Não havia mais diferença entre viver como Madre Teresa ou como
Adolf Hitler. Não havia mais como condenar terroristas, assassinos e
estupradores. Não havia mais nenhuma autoridade moral competente para nos
julgar. Alguns, como Nietzsche, foram convencidos de que as regras morais
haviam perdido o sentido. No entanto, não havia alternativa senão continuar a
seguir, com ainda mais afinco, seus gostos e desejos pessoais. Em outras
palavras, se tornaram os seus próprios deuses. Todavia, eram mais parecidos com
os deuses do Olimpo: cheios de rancor, ódio, ciúme e toda a sorte de
sentimentos humanos. Alimentados por suas próprias disputas, se afogavam cada
vez mais no lodo da abominação moral. E foi somente diante das atrocidades
cometidas nas duas grandes guerras mundiais que o homem refletiu. Como
consequência direta, a humanidade foi tomada por uma profunda desilusão com sua
própria natureza. No final das contas, os homens não eram deuses, mas reles
mortais, frágeis e falhos.
Como resposta natural às atrocidades auto infligidas, o
homem passou a refletir com maior profundidade sobre sua condição. Enquanto
isso, o século XX se transformava no período mais letal até então visto, mais
mortífero que todos os séculos anteriores somados. Agora que não havia mais um
Deus a quem culpar ou a quem apelar, a humanidade se viu obrigada a suprimir o
orgulho e reconhecer toda a culpa, tal como o apreço pela maldade. Logo,
aqueles que pensavam ser os próprios deuses se viram na figura do próprio
diabo.
E, assim, descobrimos da pior maneira que, ao matarmos
Deus, também matamos a nós mesmos. Nas palavras de Nietzsche, "como nós,
assassinos de todos os assassinos, consolaremos a nós mesmos?". Ainda no
século XX, JeanPaul Sartre e Albert Camus foram os primeiros a relatarem o
"nojo", a "náusea" e o "absurdo" de se estar vivo
em meio à bestialidade e à ameaça da tragédia. O homem finalmente havia
percebido que sua única e fiel amiga era a morte. Foi somente quando o homem se
viu abandonado na infinitude do universo é que se tornou possível compreender
verdadeiramente a sua condição.
Logo, as questões existenciais voltaram a inquietar os
filósofos: que significado supremo pode nos ser dado? Que importância real tem
a nossa existência? Por que eu estou aqui? Quem sou eu? Agora, as respostas
para essas perguntas deviam respondidas sob a ótica da nova realidade: fria e
nua. Se é o universo o único responsável pela nossa existência, eu e você somos
um subproduto acidental da natureza, resultado de uma soma de matéria, tempo e
acaso. Não há razão alguma para que existamos e tudo o que nos espera é o
absurdo da morte.
Uma vez que o universo carece de um sentido último, não
parece haver nada que possa preencher o vazio da existência. Nós somos, portanto,
desafiados a aceitar que não somos mais que um recipiente descartável. O homem,
tal como tudo aquilo que compõe o universo, eventualmente perecerá, e será como
se nunca tivesse existido. Essa constatação fica ainda mais clara quando
confrontada com as teorias mais recentes da cosmologia: em 1929, Edwin Hubble
observou que as galáxias estão lentamente se afastando. Em outras palavras,
descobriu-se que o universo está em constante expansão. Seja sua forma
hiperbólica ou plana, isso implica que ele continuará se expandindo ad infinitum. Eventualmente, todas as
galáxias para além das do seu grupo local, deixarão de ser visíveis.
Mais à frente na linha do tempo, todas as estrelas de todas
as galáxias irão morrer e nada sobrará para que se possa originar novas
galáxias e novas estrelas. Em consequência, o universo passará a ser um lugar
escuro e frio, com a malha espacial tornando-se cada vez mais esparsa e com a
temperatura caindo cada vez mais, até se fixar no zero absoluto. Então, tudo o
que restará é um grande cemitério de corpos celestes imerso em uma escuridão
absoluta. Uma vez compreendido o final trágico e inevitável do universo, nos
vemos como prisioneiros condenados à morte, apenas aguardando o dia de nossa
execução.
No romance A máquina
do tempo, do escritor inglês H. G. Wells, a gravidade de nossa condição
existencial fica mais uma vez em evidência: o viajante do tempo criado por
Wells segue rumo ao futuro distante para descobrir o destino do homem. No
entanto, tudo que encontra é uma terra morta, exceto por alguns liquens e
musgos, orbitando em torno de um gigantesco sol vermelho. Os únicos sons que
ecoam são o do vento soprando e a gentil ondulação do mar. O mundo estava em
silêncio. Todos os sons produzidos pelo homem, o balido das ovelhas, o trilado
das aves, o zumbido dos insetos, a agitação das cidades que compõe o cenário de
nossa vida, tudo isso havia deixado de existir para sempre. E, assim,
angustiado, o viajante do tempo de Wells retornou. Mas voltou para onde? Bem, para
um mero ponto anterior à corrida despropositada rumo ao esquecimento. Esse é o
cenário inevitável e perturbador que enfrentamos. Sartre chegou a defender a
ideia de que deveríamos "inventar" um sentido para as nossas vidas,
de modo a suportarmos o absurdo de vivê-la. No entanto, por que deveríamos nos
esconder em um castelo de ilusões ao invés de encarar, com coragem, a face nua
e cruel da realidade?
De fato, o homem parece estar condenado à destruição num
universo em um processo lento e angustiante de morte. Uma vez que todos nós
deixaremos finalmente de existir, junto a tudo aquilo que criamos, não faz
nenhuma diferença se algum dia realmente existimos. Nós somos, portanto, não
mais importantes do que um enxame de mosquitos ou uma manada de porcos, pois o
fim de todos nós é exatamente o mesmo. O mesmo processo cósmico cego que nos
lançou à existência, no final, nos engolirá. Então, a pessoa a quem chamamos de
“eu” finalmente deixará de existir.
Aqui, "deixar de existir" não significa apenas
deixar o plano terrestre pela porta dos fundos. Mais que isso, significa não
mais ser. Morrer é a transição do esquecimento para o esquecimento, ou ainda, a
passagem do nada para o nada. Nesse cenário, o "nada" possui um
significado perturbador: coisa alguma. O nada é justamente aquilo que não
possui predicado algum. O nada simplesmente não é. Morrer significa ser
destituído de toda e qualquer propriedade, inclusive a de "ser". Como
percebido por muitos filósofos absurdistas, nos soa muito estranho, e talvez
inassimilável, o fato de estarmos lentamente deixando de existir, conscientes
ou não. Tal como as memórias de um portador de Alzheimer, estamos sendo, aos
poucos, apagados da existência. Sem choro e sem alarde.
É verdade que alguns saem de cena mais cedo que outros, mas
é precisamente o elemento surpresa que torna o teatro da vida tão bizarro e
aterrorizante. Uma hora estamos vivos, saudáveis e felizes, enquanto fazemos
planos para o futuro. Outrora, como um apagão, estamos mortos. Para o filósofo
absurdista, todo o espetáculo é sem sentido: não há plateia alguma, tampouco um
roteiro pré-definido. Empurrados no palco repentinamente, tudo o que resta é
entretermos uns aos outros, à espera da libertação da morte.
Contemplando o Teatro do Absurdo, o dramaturgo Samuel
Beckett escreveu uma peça teatral (1969) em que as cortinas se abrem revelando
um palco entulhado de lixo. Durante exatos 35 segundos, a plateia é convidada a
prender a respiração. Silenciosos e confusos, todos contemplam aquela sujeira.
Em meio ao lixo revirado, um vagito (choro
de nascimento) começa a ecoar. Em seguida, uma lenta respiração pode ser
ouvida, em harmonia com o aumentar e diminuir da intensidade da luz. Por fim,
há um segundo vagito, idêntico ao primeiro, e a peça termina.
Logo, os holofotes se apagam e o pano cai. É tudo. Para Beckett, isso é o homem
moderno: um lixo cósmico sem significado maior. Já nascemos predestinados à
insignificância e deixaremos a existência exatamente da mesma maneira, não
importando o que fazemos ou produzimos.
Uma vez que o teatro da vida é dirigido pelo universo (um
ente cego, impessoal e sem vontades) o resultado é necessariamente uma peça
irracional. Logo, o homem se percebe estrelando o teatro do absurdo de Beckett,
numa atuação mórbida, insignificante e cruel de marionetes presas a situações
sem solução, forçadas a executar ações repetitivas ou sem sentido, com quadros
não necessariamente conectados e que se alternam entre a comédia e a tragédia.
Nesse cenário, a atuação individual é insignificante, sem propósito e irrisória
a ponto de não mudar em nada a totalidade da peça. Dada essa circunstância, a
própria existência e seus efeitos (toda a ação, sofrimento e sentimento) se
tornam também sem sentidos e vazios. Dito de outro modo, não importa o que sentimos,
o que fazemos ou o que sofremos.
Para o filósofo absurdista alinhado com o materialismo
filosófico, não há no universo razão alguma para acreditarmos que nós, seres
humanos, sejamos objetivamente mais valiosos do que um rato ou uma pedra. Se não
há, em nós, algo como uma alma; se mente e cérebro são a mesmíssima coisa, tudo
quanto pensamos e fazemos é determinado pelas leis mecânicas e deterministas da
natureza. Não há livre-arbítrio. E sem liberdade, nenhuma de nossas escolhas
realmente importa. São como os gestos espasmódicos dos membros de uma marionete
controlada pelos cordões da percepção sensorial e da constituição física. E que
valor tem uma marionete e seus movimentos? Como reles brinquedos de corda,
somos repetidamente alimentados pelas mãos do universo, até que finalmente
paremos de funcionar.
Além disso, a natureza, impiedosa, nos brindou com o dom da
senciência. Aptos a sentir o mundo, somos convidados a experienciar ciclos
intermináveis de prazer e dor. É verdade que uns sentem mais que os outros, o
que faz dos portadores de analgesia congênita os verdadeiros ganhadores da
loteria genética. Por outro lado, muitos de nós são obrigados a conviver com o
sofrimento das doenças terminais. No entanto, nesse cenário, elas são meros
efeitos colaterais de um processo evolucionário cego que não se importa com
vidas alheias. Afinal, o DNA não se importa. Ele simplesmente é como é. Em
alguns momentos, é possível que ocorra em nós surtos ilusórios de moralidade,
como um desejo desesperado de emergir à superfície dos valores em busca da
afirmação de alguma ação, propósito ou sentido no mundo, mas que logo
desaparecem no ar. Quando de volta ao abismo do despropósito, somos obrigados
novamente a conviver com os fatos nus e sem valor da existência.
Albert Camus foi um dos poucos filósofos que abordou
corajosamente o que ele considera ser a causa maior existencialista: será que a
realização da plenitude e absurdo da vida exigem o suicídio? Essa pergunta nos
empurra para dentro do campo da ética normativa. Diferentemente da ética
descritiva, cujo propósito é simplesmente descrever as ações morais, a ética
normativa trata das regras que prescrevem o comportamento humano. Em outras
palavras, ela nos diz que devemos nos ater não àquilo que os homens estão
fazendo, mas sim ao que devem fazer. Portanto, nesse caso, a questão que nos
importa não é o porquê de os homens se suicidarem, mas se devem ou não fazê-lo.
Aqui, suicidar-se significa cortar os cordões da percepção
sensorial e da constituição física para que, finalmente, possamos nos libertar
do controle mecânico e absoluto do universo. É o grito de libertação, o epílogo
do teatro macabro da vida, o ato final. Nesse cenário, o suicídio é sempre um
ato dramático, um espetáculo bizarro. A angústia preludia o clímax, enquanto, a
cada ato, converge-se mais e mais para um final súbito. A separação entre o
homem e seu titereiro é irretratável. Uma vez rompidos os cordões, perde-se os
movimentos e a atuação termina.
Sartre afirma que o suicídio é errado porque é um ato de
liberdade que destrói todos os outros atos futuros de liberdade. É uma
afirmação do ser mediante a qual a pessoa finalmente nega seu ser. É, pois, um
ato próprio que se traduz em uma tentativa de renegar-se. É a escolha que
elimina todas as escolhas. O suicídio é baseado no desejo do homem de ser
aliviado do tipo de existência que tem. Conforme disse Santo Agostinho, o
suicídio é um fracasso da coragem, é o "escapismo" existencial. Em
sintonia, Flusser, filósofo tcheco naturalizado brasileiro, ressalta que o
suicídio é uma espécie de truque teológico que consiste em uma tentativa
desonesta e covarde de escapar do absurdo. Albert Camus, por sua vez, nos diz
que é preciso continuar vivendo e convivendo com o nojo e a náusea, dia após
dia, momento após momento, para viver o mais possível, já que não se pode viver
o melhor possível. Somente assim, devorando quantidade em vez de qualidade, é
possível encarar honestamente o absurdo da vida.
Mas se todos os nossos planos e esperanças repousam no nada
e somos meros acidentes do acaso, empurrados na existência sem razão alguma,
que motivos reais dispomos parar continuar a viver? Se todos nós não passamos
de um bocado de lodo que evoluiu racionalmente, condenados a uma vida sem
propósito, alternando incansavelmente entre o prazer e a dor, por que não nos
libertarmos?
A conclusão, mais uma vez, nos desafia: se o verdadeiro fim
natural da ação humana não é a satisfação do prazer, mas a exclusão da dor,
morrer é libertar-se. Se nós somos, de fato, seres racionais, não seria
apropriado evitarmos toda a dor e sofrimento? Não seria sensato adiantar um
resultado final já estabelecido? Afinal, mais irracional do que lutar contra
uma vida absurda, é vivê-la. O filósofo alemão Philipp Mainländer, consciente
que a vida não possui qualquer valor ou propósito inerente, nos indaga: seria
não ser melhor que ser?
Se há na vida a supremacia do mal sobre o bem, sendo o mal
a privação do bem-estar, a balança da vida tende ao não-ser? Para Mainlander,
sim. E assim o fez: aos 33 anos, o filósofo alemão se enforcou sobre uma pilha
de papéis que viria a ser publicada tempos depois sob o título de "A
Filosofia da Redenção". Segundo Schopenhauer, a pior coisa que pode acontecer
a alguém é nascer, pois, para ele, vida é em grande parte sofrimento: você
sofre perdas, se decepciona e adoece. Se a vida fora despedaçada pela
indiferença de um universo sem sentido e a dor consome o que resta dela,
aparentemente, só nos resta uma porta de saída, a qual Schopenhauer nos conduz:
- "A esperança de salvação para o
homem somente pode ser encontrada na renúncia ao mundo e a todas as suas
solicitações, na mortificação dos instintos, na autoanulação da vontade e na
fuga para o nada."
Arthur
Schopenhauer
Nesse cenário, de uma forma ou de outra, o universo termina
em nada. E, uma vez que ele termina em nada,
o homem é nada. Desta forma, a unidade do mundo se apresenta na escolha do ser
primordial de nada ser. Aniquilar-se completamente; desistir de ser. Para
Schopenhauer, não se pode escapar do ser, senão pela livre escolha de não mais
ser. A redenção humana, portanto, passa a ser traduzida no objetivo de
redimir-se de suas dores e angústias. Ao nos libertarmos da agonia de ser,
abdicamos da pessoa a quem chamamos de “eu”, a qual deixará de existir, não
será mais. Para o filósofo pessimista, o suicídio é a porta de saída de um
mundo de dores e pavores, onde a maior das dores é compreender o absurdo da
vida.
De fato, não parece haver muitos motivos para que
continuemos a suportar o constrangimento de se estar vivo, de modo que todo o
sentido que há no mundo não passa de ilusões que ajudam a maquilar a cruel
indiferença da realidade. Em contrapartida, parece haver motivos razoáveis para
nos libertar de toda dor e sofrimento que experimentamos a cada dia, e,
principalmente, para adiantarmos um resultado inevitável. Aqui, é importante
notar que o algoritmo que fundamenta a calculadora da vida é o utilitarismo. O
cálculo que fazemos, portanto, é o do bem-estar. Se o saldo de prazer está
positivo, ser se torna melhor que não mais ser. Agora, se o saldo de prazer
está negativo, não mais ser parece a escolha mais racional.
É verdade que a linha que separa a dor do prazer é muitas
vezes tênue. Uma vez que sentimos o mundo de maneiras diferentes, a dor pode
ser facilmente tomada como prazerosa. Ainda assim, há de se considerar que até
mesmo o resultado do cálculo do prazer não é absoluto. Se você tem vivenciado
uma sequência interminável de dores, não significa que isso perdurará. É
possível que se inicie uma sequência de prazeres. Assumir a invariabilidade dos
resultados aqui é incorrer no problema da indução, proposto a nós por David
Hume. A grosso modo, se um fabricante de cadeiras realizou o teste de segurança
em 70 de suas 100 produzidas, não se pode assumir racionalmente que todas são
seguras. Do mesmo modo, assumirmos que teremos pela frente uma vida de
sofrimento em função de um histórico pessoal desfavorável é irracional. O erro
está em pressupor que uma sequência de eventos no futuro ocorrerá como sempre
foi no passado, sem uma justificativa sólida.
Karl Popper tenta nos redimir em favor da libertação final
dizendo que "todas as cadeiras são seguras, pelo menos até que alguma
evidência em contrário seja descoberta". Ou seja: devemos assumir que se
tivemos uma vida de sofrimentos até agora, assim o será também no futuro, até
que alguma evidência nos mostre o contrário. No entanto, a expectativa da
evidência surge exatamente como a barreira racional que nos separa de uma
decisão final, esteja ela contra ou a favor da vida. Aqui, a última frase do
romance de Sartre, Entre Quatro Paredes (1944), nos coloca contra a nossa
própria parede: "[...] devemos continuar?"
Independentemente da resposta à questão, voltamos à estaca
zero. Mas então como podemos escapar do Absurdo? Bem, simplesmente não podemos.
Segundo Camus, somos como um pássaro em seu primeiro voo. Convivemos
diariamente com a desconfiança e a ameaça da tragédia. No entanto, devemos
observar que esta é a maior prova de que sentimos e vivemos, à medida que a
angústia existencial desperta em nós uma estranha paixão. Ao contemplarmos a
superfície da morte e todo o seu absurdo, intuitivamente - ou contra
intuitivamente - sabemos que somos capazes de saltar e planar, e o fazemos,
principalmente, porque nossas asas são feitas de esperança. E essa esperança
não repousa no nada, mas na certeza 'quasi-irracional' de que haverá um amanhã.
Essa é, pois, a mesma certeza que temos em nós quando afirmamos a beleza ou o
amor no mundo. São reais, independentemente do que pensamos ou sentimos, mesmo
que não tenhamos como justificá-las. Da mesma maneira, sentimos que nós, de
algum modo, também somos reais e moralmente valiosos. Sentimos que nossas
escolhas importam.
Se a existência de um propósito maior que aquele que
conferimos a nós mesmos é a condição para que possamos afirmar racionalmente
nosso valor no universo, então, somente em um mundo onde há um sentido objetivo
é possível ser consistentemente feliz. Ironicamente, este é o mundo onde Deus
habita. O dilema do homem moderno consiste na clausura de um castelo de
ilusões, onde tudo tem um propósito e um sentido, mas que foram elaborados
apenas para maquiar os fatos nus e sem valor da existência. O homem moderno
vive como se existisse um valor ou propósito verdadeiro no mundo porque é
incapaz de conviver com os fatos nus da existência.
A incapacidade de suportar a verdadeira faceta da realidade
o empurra para dentro do castelo de ilusão, quase como um instinto natural de
autopreservação. Afinal, um mundo moralmente indiferente é um mundo impossível
de ser habitado. Sabendo disso, o homem passa, dia após dia, tentando convencer
a si mesmo de que há propósito e valor no mundo, enquanto é assombrado pelas
sombras da indiferença implacável da natureza.
Para finalizar este texto, deixemos mais uma vez que Albert
Camus resuma a frágil condição existencial do homem moderno:
"A grande
parte da nossa vida é construída sobre a esperança do amanhã, do amanhã que nos
aproxima da morte, e é o último inimigo; pessoas vivem como se elas não
tivessem a certeza da morte; uma vez despojado do romancismo comum, o mundo é
um estranho e desumano lugar; o verdadeiro conhecimento é impossível de ser
explicado pela racionalidade da ciência em favor do mundo: suas histórias, em
última análise, no sentido de abstrações, se dão em metáforas. Desde que o
momento absurdo é reconhecido, ele se torna a mais angustiante de todas as
paixões."
Albert Camus
Andrei
S. Santos