Aborto: Uma Defesa Filosófica da Vida
Uma Defesa Filosófica da Vida
Este
artigo tem como objetivo principal trabalhar o problema moral do aborto, bem
como o status antropológico do feto. Desde já, faz-se necessário clarificar que
não serão utilizados como argumento/evidencia apelos emotivos ou religiosos,
mas apenas argumentos filosóficos e racionais, para, assim, se chegar à
conclusão de que o aborto é errado, moralmente falando, e, portanto, sua
legalização incorre em um vilipêndio contra a vida de uma pessoa, que apesar da
localização geográfica, tem seus direitos assegurados.
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Introdução
Antes de falarmos sobre o aborto, uma
questão mais básica surge: por que devemos fazê-lo? Em tempos que, de um jeito
ou de outro, as pessoas têm suas opiniões formadas, parece pouco proveitoso
falar sobre o tema. Todavia, embora haja uma grande diversidade de escritos e
uma enorme facilidade para acessá-los, parece que o aborto tem sido
filosoficamente negligenciado. Com isso, se quer dizer que os debates têm se
concentrado do âmbito da ciência, ao passo que as questões fundamentais – e
talvez as únicas que, de fato, importam – como a pessoalidade, passam
despercebidas. Não obstante, é preciso dizer que a sofisticação argumentativa em torno do tema, a nível popular, é praticamente inexistente. Nesse sentido, pretende-se, com este artigo, lançar luz ao debate.
Segundo Kaczor, em A ética do Aborto (2011, p. 15), um
enfoque aberto sobre o tema é essencial para a vida da mente. Nesse sentido,
enquanto se busca lucidez, perspectivas e esclarecimentos sobre uma questão tão
delicada, se preserva a honestidade intelectual e a humildade de considerar,
com base em evidências razoáveis, uma mudança de posição. De qualquer maneira,
quando tratamos da pessoalidade do feto, a questão aparenta se tornar mais
séria que nunca. Por definição, o ato de assassinar consiste em retirar,
deliberadamente, a vida de uma pessoa inocente. Nesse sentido, se o feto é uma
pessoa, o aborto parece ser assassinato, e, portanto, moralmente inaceitável.
Do mesmo modo, parece razoável admitirmos que toda pessoa tem direito à vida.
Em contrapartida, se o feto não é uma
pessoa, há razão suficiente para considerarmos o aborto como sendo moralmente
permissível. É claro que há questões adjacentes e desdobramentos, como o
direito de liberdade das mulheres em relação ao direito à vida, o impacto do
aborto nas próprias mulheres, o que consideramos como sendo uma vida e os
diversos critérios da pessoalidade. Todavia, essas são questões que serão
tratadas com o seu devido rigor nos próximos tópicos. Não obstante, a filosofia
tem se mostrado como o caminho mais adequado para se responder a uma questão
ainda maior: o que devemos fazer?
A ciência não parece ser capaz de
responder às questões do reino dos valores, ao passo que estes não são
entidades concretas, e, portanto, não são acessíveis ao conhecimento empírico.
Ora, não é possível pegar o valor da “justiça” e introduzi-lo em um tubo de
ensaio a fim de estuda-lo. Dito de outro modo, podemos conceber que é possível
examinar empiricamente o que ocorreu nos campos de concentração nazistas, mas
parece não ser possível, utilizando a mesma metodologia, dizer se aquilo foi
bom ou ruim. Essa questão surge em um problema bem conhecido dos filósofos: o
problema da distinção fato/valor.
Aparentemente, existe uma lacuna
metafísica fundamental entre fato – uma mera descrição da realidade – e valor –
uma prescrição da realidade. A fins argumentativos, consideremos um simples
desacordo ético sobre o aborto. O indivíduo A diz que a referida prática é
sempre moralmente errada, ao passo que o indivíduo B diz que é sempre moralmente
correta. O pró-vida diz que o feto possui funções cerebrais ativas, já o pró-escolha
diz que o aborto é moralmente permissível, pois o feto não possui funções
cerebrais ativas. Nesse caso, o desacordo aparenta ser sobre fatos. Assim
sendo, nós poderíamos utilizar a ciência para provar que ambos estão errados,
seja demonstrando que fetos possuem funções cerebrais ativas ou não.
Todavia, ao elevarmos o desacordo ao
nível dos valores, tudo parece mudar. O indivíduo pró-escolha poderia sustentar
que a autonomia da mulher sobre seu corpo supera todas as outras considerações,
enquanto o pró-vida poderia sustentar que o feto possui direito à vida e que,
portanto, este supera todas as outras considerações. A questão é que esses
valores parecem ser muito diferentes dos fatos. Em suma, no primeiro exemplo, o
desacordo era sobre fatos (o que é), ao passo que no exemplo recente, o
desacordo era sobre valores (o que deveria ser). No último, a ciência nada pode
fazer para demonstrar quem está com a razão, e é justamente aqui que repousa a
discussão central do aborto.
Por fim, o estatuto moral do feto requer
um cuidadoso exame filosófico, à medida que o mesmo parece implicar em um dever
moral fundamental: o de não matar. Deve-se deixar claro, no entanto, que o
referido artigo trata da admissibilidade
moral do aborto, e não de sua legalidade.
Não obstante, toda a discussão sobre o aborto parece se pautar em poucas, mas
fundamentais questões: o feto humano é
uma pessoa? Quando se começa a ser pessoa? Ainda que o feto humano seja uma
pessoa, o aborto seria sempre – e necessariamente – errado? Serão sobre
essas perguntas que nos debruçaremos nos capítulos a seguir. Em tempo,
utilizaremos como base argumentativa e em forma de resumo, para todo o texto, o livro do
proeminente filósofo Christopher Kaczor: a ética do aborto (2011).
1 Um Grande Mal-entendido
Comumente – e não somente a nível
popular – nos deparamos com questões relacionadas ao status biológico do feto.
Em resumo, tudo gira em torno da seguinte questão: um feto em desenvolvimento é um ser humano? Ora, parece-me óbvio
que, se um ser humano é um recém-nascido, um adolescente ou um adulto, ele é,
em cada ponto, um ser humano em um estágio diferente de seu desenvolvimento.
Aqueles que negam que, o que há no útero é um ser humano, parecem confundir ser humano com um ser em algum estágio posterior de desenvolvimento. A título de
exemplo, alguns defensores do aborto dizem que, porque um embrião não é um
bebê, não é um ser humano e, portanto, o aborto é moralmente aceitável.
Todavia, este argumento é
completamente falacioso, além de ser irrelevante. Por esse raciocínio, poder-se-ia
dizer que, porque uma criança não é um adulto, ele não é um ser humano; ou
porque um bebê não é uma criança, ele não é um ser humano. Claro que um embrião
não é um bebê, mas isso não quer dizer que um embrião não é um ser humano.
Todas estas nomenclaturas são simplesmente as várias fases de desenvolvimento
de um ser da espécie humana. O fato é que, desde a concepção até à velhice,
tem-se os vários estágios de desenvolvimento da vida de um ser humano. No
âmbito científico, essa questão está encerrada, mas, ainda assim, a indagação
parece falhar o alvo.
Como vimos na introdução, o status
biológico do feto pouco importa, afinal, é um tanto óbvio que estamos falando
de um ser da espécie humana. Essa objeção somente nos serve para termos certeza
de que estamos falando de um ser humano, e não de um ganso ou um ornitorrinco.
A questão fundamental surge com a seguinte pergunta: esse ser da espécie humana
é uma pessoa? Notem que essa indagação pode ser estendida a quaisquer outros
seres de outras espécies. Nesse sentido, não é, portanto, uma requisição
arbitrária à espécie humana, mas uma pergunta genuinamente filosófica e
fundamental ao debate.
2 Definindo o Ser pessoa
É comum – e até mesmo intuitivo –
postularmos os termos “pessoa” e “ser humano” como sendo sinônimos, mas devemos
ter em mente que não o são. Poderíamos nos inclinar a pensar que todas as
pessoas são seres humanos, mas não parece ser uma definição precisa. Tooley
define o conceito moral de “pessoa” como alguém que tem sério direito à vida a
não ser morto (1972, p. 41). Nesse sentido, a definição torna-se mais
abrangente e satisfatória. Muitos de nós acreditamos que haja categorias de
pessoas que não são humanas. Alguns ativistas ambientais acreditam na
pessoalidade de alguns animais, como golfinhos e primatas de ordem maior. Do
mesmo modo, existem pessoas que acreditam em outro conjunto de pessoas não
humanas, como anjos, demônios, as divinas Pessoas da Trindade (Pai, Filho e
Espírito Santo). Há também aqueles que acreditam na pessoalidade de
extraterrestres.
A título de exemplo, se alienígenas chegassem
à Terra a fins de cooperação entre espécies, eles seriam tratados como pessoas,
mesmo que não sejam humanos. Por essa razão, Tooley observa, acertadamente, que
a constituição biológica não parece ser essencial em determinar se tal ser tem
direito à vida (1972, p. 51). Não obstante, pode ser que, no fim, não haja
pessoas não humanas. Todavia, assim como não se segue necessariamente que todos
os humanos sejam doutores mesmo se todos os doutores são humanos, assim não se
segue necessariamente que todos os humanos sejam pessoas, ainda que todas as
pessoas sejam humanas. Desse modo, ainda que garantido que todas as pessoas
sejam humanas (muito embora longe de estar claro como se poderia demonstrar
isso), fica um outro questionamento crucial para o tema do aborto: todos os
membros da espécie Homo sapiens merecem
respeito para não serem intencionalmente mortos?
3 O Princípio da Potencialidade
A título de exemplo, Tooley argumenta
que a potencialidade do feto se tornar pessoa é irrelevante. Ele procura
mostrar isso através do exemplo de um gatinho injetado com soro especial
desenvolvido por cientistas para estimular e desenvolver uma racionalidade
“superfelina” (TOOLEY 1960, p. 60). O soro pode transformar os jovens gatos em
seres racionais. Agora, imagine que você tenha três gatinhos e o soro
disponível. Você estaria obrigado a fazê-los gatos falantes, como Salém (Sabrina, a bruxa adolescente)? Seria
muito gentil, mas você não teria o dever de fazê-lo. Aqui, Tooley aplica o que
chama de princípio da simetria: se não é seriamente errado abster-se de iniciar
um processo causal, então não é seriamente errado interferir no processo
encaminhado (TOOLEY 1972, p. 58).
À luz do princípio da simetria de
Tooley, se você faz um aborto ou elimina um recém-nascido, um animal racional
atuante, uma pessoa humana, não vai chegar a ser. Nesse sentido, se não temos a
obrigação de tornar racionais todos os gatinhos, do mesmo modo, não temos
obrigação de deixar todos os fetos humanos ou bebês humanos desenvolver-se em
animais racionais (TOOLEY 1972, p. 62). Uma vez que o bebê e o feto humano, no
melhor dos casos, têm o potencial de se tornar adultos atuantes, o direito à
vida desmorona, se baseado no princípio da potencialidade.
A questão da pessoalidade mais uma
vez se mostra: todos os seres humanos são
pessoas? Poderia haver alguns membros da espécie Homo sapiens, partilhando características genéticas, mas que, no
entanto, não tenham direito à vida? Vários filósofos, como Tooley, Singer,
David Boonin, Mary Anne Warren e muitos outros, afirmam que o feto é um ser
biologicamente humano, mas não pessoa moral. Nesse sentido, o direito à vida
passa a ser justificado de outras maneiras. À luz do critério desses filósofos,
analisaremos, caso-a-caso, o direito à vida do feto.
4 O Critério da Experiência
Na ausência da pessoalidade, Tooley
oferece um critério para o direito à vida: tem direito à vida um organismo que
se compreende a si mesmo como sujeito contínuo de experiência (1972, p. 62). Em
apoio a Tooley, Singer oferece um conceito de pessoalidade como “um ser
consciente de sua experiência e capaz de ter desejos e planos para o futuro
(1994, p. 218). Essa definição tem vários elementos que definem o status
antropológico. Um ser é pessoa se, e somente se, tem:
(2) Ao longo do tempo e em diversos lugares;
(3) A capacidade de ter desejos;
(4) Planos para o futuro;
Para entendermos melhor esse
critério, tenhamos em mente a seguinte analogia: Se Joana tem um relógio e
resolve dá-lo de uma vez para Benjamin, que resolve destruí-lo, os direitos de
propriedade de Joana em nada foram violados. Seria uma violação apenas se ela
quisesse conservar o relógio em ordem, funcionando com ela, e Benjamin, sem o
seu consentimento, quebrasse o que era dela ou o destruísse. Esse exemplo nos
indica claramente que há relação entre direitos e desejos. Nossos direitos,
portanto, brotariam de nossos desejos, somente havendo violação do primeiro se
o segundo é contrariado.
Todavia, Tooley reconhece algumas
exceções importantes à regra de que não violamos o direito de alguém se não
contradizemos seus desejos. A título de exemplo, há os casos de perturbação
emocional (TOOLEY 1972, p. 47). Quando impedimos um adolescente de se suicidar
porque a namorada rompei com ele, não violamos seus direitos ao impedi-lo de
tirar sua vida. Do mesmo modo, pessoas emocionalmente perturbadas podem ter
vontade – temporária ou permanente – de ferir a si mesmas. Embora o queiram
fazer, seus direitos, inclusive à vida, permanecem.
Uma segunda exceção seria o caso de
alguém, antes consciente, e agora inconsciente. Obviamente, quando estamos
dormindo, nossos desejos se modificam radicalmente. Sob anestesia, podemos não
ter desejo algum. Todavia, evidentemente, alguém que está adormecido ou
anestesiado mantém o seu direito à vida, pois este não é episódico. Desse modo,
Tooley reconhece mais essa exceção. Ainda assim, há uma terceira, concernente a
indivíduos cujos desejos possam estar distorcidos por condicionamentos ou
doutrinação. O caso do suicídio coletivo no Templo dos Povos, perpetrado por
Jim Jones, em 1978, nos serve como exemplo. Desbloqueadores da programação
cultural ajudam famílias a recuperar seus filhos, embora estes, ao menos no
começo do tratamento, queiram permanecer na doutrinação. Desse modo, não se
viola direito algum.
De qualquer maneira, para Tooley,
direitos nascem de desejos, sejam eles distorcidos ou não. No entanto, um ser
não pode ter desejos a não ser que tenha conceito de si mesmo como sujeito de
experiência. Assim, qualquer ser sem conceito de si mesmo não pode ser pessoa.
Obviamente, nenhum feto humano tem conceito de si mesmo, e isso é verdade
também para o neonato. Exatamente como ninguém viola meus direitos de
propriedade quando leva o que eu não tenho interesse em ter, assim nada se faz
de errado com o feto humano ou neonato em eliminá-lo porque ele não tem
conceito de si, assim como não tem desejo de viver, então não há direitos a ser
violados. Dessa forma, o argumento de Tooley sustenta não somente o aborto, mas
o infanticídio.
Ora, mas quando se começa a ter
conceitos, de fato? Filósofos analíticos como Davidson, Malcom e Stich
acreditam que estes se desenvolvam com a linguagem (DAVIDSON 1984, p. 157).
Caso se assuma essa visão da relação entre conceito e linguagem, então a
eliminação do novo ser humano é permissível até que se desenvolva a fala. O que
varia amplamente entre crianças, mas começa em média ao redor de nove meses até
dois anos e meio (para algumas crianças ainda mais tarde). Nessa perspectiva,
não apenas o infanticídio, mas eliminar crianças mais velhas seria permissível
até que a criatura pudesse se expressar verbalmente. A situação se mostra ainda
mais assustadora quando nos deparamos com deficientes permanentes de fala.
Poucas pessoas estão dispostas a
aceitar o fato de que muitos argumentos em favor do aborto funcionam
perfeitamente em favor do infanticídio. Ora, é desnecessário dizer que nem toda
gente está convencida de que o infanticídio é moralmente permissível.
Arrisco-me a dizer que a grande maioria dos defensores do aborto o condenam,
mas sem notar essa peculiaridade argumentativa.
Todavia, esse é um fator que deve ser levado em consideração, por força
da lógica. Não obstante, à luz desse fato, o infanticídio será posto em questão
ao decorrer desse artigo.
5 A Espécie é Moralmente Irrelevante?
Se a diferença é, de fato, moralmente
relevante, a defesa dos direitos dos neonatos e dos fetos humanos não precisa
se apoiar necessariamente no princípio da potencialidade. Tooley afirma que a
diferença não é relevante, mas essa alegação é altamente controversa. A título
de exemplo, parece haver uma enorme diferença entre atropelar e sair sem
prestar socorro a um esquilo e a um recém-nascido humano, mesmo se o bebê morto
era mentalmente prejudicado ou órfão. Em segundo lugar, embora haja pessoas vegetarianas
por respeito ao valor moral dos animais, existe uma grande diferença entre
consumir uma sardinha e um Sardinha, mesmo que este, por seu retardo mental,
não seja mais inteligente que um peixe.
A condenação do canibalismo parece se
fundar, ao menos em algum nível, na convicção da diferença moral relevante
entre espécies. Do mesmo modo, embora os hábitos sexuais tenham mudado, em
grande parte nas últimas décadas, é errado para seres humanos terem intercurso
sexual com animais não humanos. A condenação da bestialidade também parece se
fundamentar na diferença relevante entre as espécies. Nesse sentido, a posição
de Tooley parece desabar frente a essa noção intuitiva.
6 O Critério da Consciência
As defesas do infanticídio tipicamente
pressupõem uma compreensão do ser pessoa que postula a consciência. Nicole
Hassoun e Uriah Kriegel, em seu artigo “Consciência e a permissibilidade moral
do infanticídio”, resumem sua postura contra considerar bebês recém-nascidos
como pessoas da seguinte forma: “não é permitido matar intencionalmente uma
criatura, somente se a criatura é autoconsciente. Ora, é razoável crer que há
um tempo em que infantes humanos não têm consciência de si mesmos, portanto, é
razoável crer que é permitido matar intencionalmente alguns infantes humanos”
(2008, p. 45). Aqui, é possível estabelecer um paralelo com os critérios de
Singer, já abordados no ponto (1) do tópico 4.
O critério de Nicole e Uriah está
aberto, pelo menos, a três interpretações. A primeira, tomada literalmente como
se enuncia – um ser é pessoa apenas se (atualmente) está consciente de sua
própria existência – implicaria que cessamos de ser pessoas cada vez que
adormecemos ou somos anestesiados, o que é um absurdo. Essa concepção exclui
não apenas o neonato, mas todos os adultos portadores de uma profunda
deficiência mental. Ora, ninguém admite que seja moralmente permitido matar um
ser humano submetido à cirurgia, ou nocauteado no boxe, durante o sono ou
desmaiado após um acidente de carro. No entanto, falta a esses seres humanos a
autopercepção e a consciência.
Alguns tentam contornar o problema
apelando à capacidade imediata do exercício de autopercepção. Uma pessoa
fluente em alemão pode estar falando inglês ou dormindo no momento, mas pode se
ligar em ritmo rápido e atualizar sua capacidade adormecida de falar alemão. O
adormecido pode exercer imediatamente a capacidade para a consciência
acordando, mas o neonato não pode exercer imediatamente sua capacidade de
autopercepção. Essa noção garante direitos aos adultos normais adormecidos, mas
não àqueles em coma temporário, pois estes não podem atuar imediatamente sua capacidade de autoconsciência. Na verdade,
às vezes levam meses e mesmo anos até poderem, de novo, ser capazes de
autoconsciência. No entanto, ninguém sustenta que seres humanos em coma
temporário não mereçam respeito como pessoas.
Numa terceira visão, diz-se que o que
importa é a posse da “aparelhagem mental” ou a arquitetura neural corrente que
possibilite a autopercepção (SAVULESCU, 2002). Mesmo se você nunca estudou uma
palavra em alemão e, assim, não tem como atualizar o potencial que tem de falar
alemão, você é capaz de aprender essa língua se seu cérebro funciona de forma
que, dada a oportunidade adequada, você aprende alemão. A capacidade entendida
nesse sentido assegura o direito à vida a seres humanos em coma temporário, mas
não necessariamente a todos. Se o cérebro de alguém é gravemente danificado em
acidente de carro, em alguns casos o ser humano atingido não tem mais o
“equipamento” neural funcional. Embora não seja possível, no atual estado de
nossa tecnologia, digamos que um dia técnicas médicas avançadas possam reparar
cérebros e, assim, a pessoa lesada possa ter de novo o equipamento neural
funcionando novamente.
Se tais técnicas fossem disponíveis,
não haveria diferença importante entre o ser pessoa do comatoso temporário de
hoje e a vítima de acidente de carro no exemplo. Assim, ter o equipamento
neural necessário para a consciência atualmente funcionando não parece ser, de
fato, essencial para ser pessoa. Afinal, por que o seria? Parece arbitrário
simplesmente escolher uma condição necessária para a autopercepção – estrutura
neural – mais que outras, como estar vivo e a natureza específica racional. Se
qualquer outra condição necessária para a autopercepção é também suficiente,
então, de novo, se deveria considerar pessoa o infante humano vivo, por sua
natureza racional.
Outra tentativa de se solucionar o
problema do coma é dizer que, uma vez que um ente se torna pessoa, esse ente
não mais perde esse status enquanto exista. Ser pessoa, uma vez alcançado com a
consciência inicial, não se pode perder até o fim da vida. No entanto, além de
ser uma resposta ad hoc, não é claro
porque alcançar a consciência deveria decidir o ser pessoa. Ser pessoa é uma
prerrogativa por ter chegado à consciência um tempo? Por que deveria um ser que
alcançou a consciência e a perdeu permanentemente tem valor moral maior que um
ser que está em vias de chegar à consciência que exercitará no decurso da vida
toda?
7 O Critério das Doenças Graves
Algumas pessoas se opõem a eliminar
neonatos sadios, mas admitem que se mate bebês incapacitados. Em seu artigo “Encerrando a vida de um neonato: o
Protocolo de Groningen”, Hilde Lindemann e Marian Verkerk apoiam quem
“responsavelmente termina a vida de neonatos severamente lesados” por vários
tipos de doenças sérias. O argumento delas é honestamente direto e, na forma
similar, àquele geralmente usado a fim de justificar a eutanásia. Lindemann e
Verkerk defendem o Protocolo de Groningen, todavia, sua defesa parece falhar
nos fundamentos. Assume-se como dado que um sofrimento sério – entendido como
dor física ou agonia psicológica – torna sem valor a vida de quem sofre,
pressupondo um dualismo entre o eu e o corpo. Em todo caso, há boa razão para
questionar a concepção dualista do “eu” pessoal contraposto à existência
corporal da pessoa (LEE, GEORGE 2007). Se todas as pessoas humanas têm valor
intrínseco e a vida da pessoa é a pessoa em sua dimensão corporal, segue-se que
todas as vidas humanas, inclusive a de quem sofre duramente, têm valor
intrínseco. Além disso, a problemática se mantem em um dilema de duas vias: se
deixa o bebê sofrer ou se mata-o conscientemente. Não se menciona uma terceira
alternativa, que seria usar fármacos que aliviem o sofrimento.
Lindemann e Verkek também assumem
falsamente que a retirada ou omissão de apoio à vida de um paciente de qualquer
idade depende do julgamento de que a vida do paciente não tem mais valor. No
entanto, a decisão de não aplicar ou de remover tratamento especial de
prolongação da vida não se baseia necessariamente na suposição de que a vida da
pessoa, de que seu “eu mesmo” não vale mais a pena. Se, ao ver de quem tem
autoridade para o cuidado do paciente, as desvantagens do tratamento pesam mais
que seus benefícios, o tratamento não precisa ser ministrado ou pode ser
interrompido sem recorrer à convicção de que essa vida não tem mais valor.
Parece óbvio: a situação do paciente vai condicionar parcialmente o grau em que
um dado tratamento e vantajoso ou desvantajoso (KEOWN, 2002). No entanto, a
pergunta adequada é se o tratamento vale a pena, e não se a vida do paciente
vale a pena em termos de benefícios e custos.
A típica defesa do infanticídio
assume que na maioria dos casos em que é desejável, será claro logo depois do
nascimento (TOOLEY 1972, p. 64). Seja como for, em muitos casos, a extensão das
deficiências das crianças prejudicadas não vai aparecer num curto lapso de
tempo após terem nascido. Nesse sentido, propostas mais ousadas têm sido
trazidas à mesa. Embora algumas pessoas aleguem evidências de autoconsciência
apenas doze a catorze dias depois do nascimento, Hassoun e Kriegel também
oferecem o que tomam como outro plausível ponto de corte para o prazo do
infanticídio:
É
plausível tomar o autorreconhecimento no espelho como evidência de presença de
autopercepção. A questão que desejamos nos perguntar a nós mesmos é em que
idade os humanos desenvolvem a capacidade de autorreconhecimento no espelho. A
evidência indica que os seres humanos desenvolvem a capacidade de se reconhecer
no espelho entre 18 e 24 meses (2008, p. 49).
Embora quase ninguém aceite a morte
de crianças inocentes de até 2 anos de idade, a visão de que ser pessoa requer
autopercepção consciente empurra para esta conclusão absurda, o que é uma boa
razão para rejeitar essa visão do ser pessoa subjacente. De fato, levado a suas
conclusões lógicas, o modo de ver defendido pelos defensores do infanticídio é
tão radical que leva a implicações que ninguém está disposto a aceitar.
Realmente, se um recém-nascido logo após o parto é menos pessoa que um bezerro,
um porco ou uma galinha (SINGER 1993, p. 151), então o infanticídio não deveria
ser mais difícil que matar sem dor um animal para a alimentação.
Como vimos anteriormente, essas
conclusões altamente controversas se aplicam não somente a bebês humanos, mas
também a adultos mentalmente prejudicados que funcionam no mesmo nível de
infantes. Nem se precisa dizer que questionamentos e respostas críticas têm
dificultado a defesa do infanticídio. Em sua ampla maioria, as pessoas a favor
de se admitir moralmente o aborto, não defendem também o infanticídio. Muitas
delas sustentam que se pode permitir o aborto da concepção até o parto, e não
depois. Nesse modo de ver, infantes recém-nascidos não devem ser mortos
intencionalmente, mesmo indesejados pelos pais, mesmo nascidos em situações
trágicas, mesmo concebidos por incesto ou estupro, mesmo com suas perspectivas
sombrias de futuro. Todavia, um ser humano no útero, nas mesmas circunstâncias,
pode ser abortado.
8 Aborto e Infanticídio
O que distingue meros seres humanos
ou pessoas “potenciais” de pessoas “reais” ou “atuais”? Warren oferece cinco
diferentes critérios pelos quais podemos destacar esses dois conjuntos de seres
(1973, p. 263). Não é necessário ter todos esses traços para ser pessoa, mas
qualquer ser que não disponha de nenhum deles, certamente, não é uma pessoa. Em
primeiro lugar, pessoas têm consciência de objetos e eventos, externos ou
internos a elas mesmas, em particular a capacidade de sentir dor (WARREN 1973,
p.163). Nesse sentido, seres humanos a quem falta essa capacidade de
consciência, particularmente a capacidade de sentir dor, não são pessoas.
Segundo: pessoas podem raciocinar,
têm desenvolvida a faculdade de resolver problemas novos e complexos. Pessoas
potenciais não funcionam desse modo. Terceiro: pessoas têm atividade
automotivada, isto é “atividade relativamente independente de controle genético
ou externo”. Pessoas potenciais não sabem se controlar no grau requerido.
Quarto: pessoas possuem a capacidade de se comunicar por quaisquer meios, em
mensagens de uma variedade indefinida de tipos, isto é “não apenas com número
indefinido de conteúdos possíveis, mas a respeito de um conjunto indefinido de
tópicos. Pessoas potenciais só podem se comunicar muito pouco ou às vezes
simplesmente nada. Quinto: pessoas têm “presentes autoconsciência e
autopercepção individual, racial ou ambas”. Aos meros seres humanos, faltam
tais predicados.
Para Warren, a primeira e segunda
condições – sensibilidade e faculdade de raciocínio – parecem bastar para a
pessoalidade, mas se, a um ser, faltassem todas as cinco, este não seria uma
pessoa, embora possa sê-lo potencialmente. Do mesmo modo, para Warren, seres
humanos gravemente deficientes ou lesados, seja no processo de nascimento ou
até mesmo por acidente mais tarde na vida, não são pessoas se perderam
permanentemente a consciência (p. 262-264). Assim, os critérios de Warren
excluiriam não só todos os seres humanos antes do nascimento, mas alguns muito
depois do nascimento.
Como Warren se dá conta, a concepção
de pessoalidade desenvolvida aqui nos leva a concluir que matar um
recém-nascido não é assassinato, já que o infanticídio não é a morte de uma
pessoa, mas apenas de um ser humano (WARREN 1973, p. 266). Não obstante,
persiste em dizer que é moralmente errado, pois, se os pais biológicos não
querem a criança, outras pessoas querem, a saber os inúmeros casais em filas de
adoção. Nesse sentido, como é errado destruir algo que os outros desejam muito,
mesmo se acontece que você não tenha tanto interesse, é ruim destruir um
neonato tão querido por tantos outros.
Warren observa que a maioria das
pessoas não quer que bebês recém-nascidos sejam eliminados. Todavia, se as
pessoas querem proteger bebês recém-nascidos e estão dispostas a pagar por
orfanatos e outras formas necessárias de cuidado, então bebês não devem ser
eliminados, mas, pelo contrário, protegidos. Desse modo, a sociedade como um
todo deseja que bebês não só não sejam destruídos, mas protegidos por lei e
bem-vindos à vida. No entanto, Warren mantém que matar bebês deficientes não
queridos, nascidos numa sociedade que não valorize o neonato, seria
permissível. O racional parece ser
que não haverá outros querendo os neonatos em tal sociedade (p. 267). Seja como
for, nossa sociedade valoriza neonatos e, assim, em nosso contexto, seria
inadmissível mata-los.
Segundo Warren, de qualquer maneira,
a diferença-chave entre aborto e infanticídio é estritamente geográfica: o feto
humano reside no interior da mãe, e assim tem seus direitos à liberdade, à
felicidade e autodeterminação tolhidos. Se de algum modo fosse possível remover
o feto humano do útero sem matá-lo, eliminá-lo não mais seria permitido,
exatamente como não se permite matar o bebê após o nascimento. O problema é
que, mesmo diante dos esforços para aprovar o aborto e condenar o infanticídio,
os argumentos utilizados sempre servem a
ambos. Para Warren, o infanticídio está errado porque, embora os pais
biológicos não queiram a criança, outros casais a querem. A dificuldade, ao que
parece, é que esse mesmo raciocínio tornaria inaceitável não só o infanticídio,
mas também o aborto, visto que não é somente o infanticídio que não deixa casais
adotarem uma criança, mas também o aborto.
Engelhardt tenta contornar a questão
da permissibilidade do infanticídio apelando a uma espécie de conceito social
de pessoa. Ele o faz, principalmente, dizendo que o infante é biologicamente
humano e, assim, merece uma dose de respeito. Todavia, mais uma vez, suas
razões parecem se aplicar ao aborto. Ao fim de tudo, se um infante merece um
mínimo de respeito por ser geneticamente humano, por que um ser humano gerado
de genitores humanos, no seio de mãe humana, membro da espécie Homo sapiens, tanto quanto qualquer
recém-nascido, não deveria também merecer respeito? Se banir o infanticídio, de
alguma maneira, contribui para assegurar o desenvolvimento sadio das crianças,
por que o mesmo não valeria a respeito de banir o aborto?
Se nem fetos humanos nem neonatos
contam como pessoas no sentido estrito, por que se deveria contar os infantes
como pessoas mesmo apelando ao sentido social de Engelhardt? A única resposta
racional é que, no infanticídio, o novo ser humano não está mais dentro do corpo
da mulher e, no aborto, ainda está dentro do corpo da mulher. Em suma, a
questão passa a ser estritamente geográfica. Warren parece se encontrar em um
dilema: para ser coerente, ela deve abandonar a postura do aborto ou aderir à
causa do infanticídio (CARD, 2000). Warren tenta distinguir aborto de
infanticídio apelando à interação com agentes morais, mas parece não funcionar,
pois esse raciocínio não exclui o infanticídio como escolha seletiva entre os
bebês antes que a fala surja.
Em seguimento, Warren apela às
diferenças de evidência comportamental e neuropsicológicas entre um neonato e
um feto humano (WARREN 2000, p. 355). Todavia, mesmo sendo clara a diferença
entre a capacidade fetal de sentir no começo da gravidez e a do ser humano recém-nascido,
essa diferença não serve para delimitar a distinção entre aborto e
infanticídio. Como Warren tacitamente admite, não há significativa diferença
entre a capacidade de sentir de um feto humano um dia antes do parto e a do
mesmo ser humano com 24 horas de nascido. Nesse sentido, em vista de mostrar a
diferença entre aborto e infanticídio, o defensor do aborto deve mostrar que há
uma importante e fundamental diferença entre ambos.
9 Localização Geográfica
Para Warren, o nascimento é o
instante em que um ser humano começa a ter direitos, inclusive de que sua vida
seja respeitada. Diferentemente da autoconsciência ou da capacidade de ser
racional, o critério do nascimento não vai excluir do direito à vida pessoas
portadoras de graves lesões que afetam sua mente ou idosos senis. Todavia, a
localização geográfica como critério suscita problemas cômicos e inusitados.
Todo ser humano parece ser ou não ser pessoa independentemente da localização
dentro ou não do corpo de uma pessoa. Por que deveria a pessoalidade de um ser
humano diminuir ou mesmo cessar porque está vivendo dentro do corpo de outra
pessoa? Imagine-se a última consequência dessa visão para dentistas, cirurgiões
ou homens durante o ato sexual.
Há realmente uma diferença decisiva
na evolução “para ser pessoa” de um ser humano entre um minuto antes do parto e
um minuto após? O momento decisivo para o feto é ao deixar o útero ou o canal
vaginal? Tem que estar todo fora do ventre ou a saída da cabeça já garante a
pessoalidade? O que acontece se o bebê inteiro já nasceu, mas o médico lhe
manteve um pé dentro da mãe, ele é “meia” pessoa? Esses e muitos outros
questionamentos – tão ou mais cômicos – ilustram
bem a inadequação do referido critério.
10 O Critério dos Desejos Conscientes
A definição da pessoalidade pelos
anseios soa: se a um ser absolutamente nada pode importar, então esse ser não
tem anseios. Não se pode levar em conta anseios seus e carece de status moral”
(STEINBOCK 1992, p. 15). De acordo com David Boonin, matar você ou a mim é
incorreto por impedir nossos desejos, especialmente o desejo de ter um futuro
como o nosso (2003, p. 125). Todavia, o desejo tem que ser presente, e não
futuro (diferentemente de Tooley). A razão para Boonin de sustentar que os
desejos presentes são os que dão direito à vida é que ele crê que esse parecer
provê uma explicação mais incisiva e concisa da proibição de matar em casos não
controvertidos do que o faria apelar a desejos futuros. Assim, para Boonin, não
são os desejos futuros que fazem diferença para os direitos, mas os desejos
atuais.
O desejo pode ser ideal mais que
real, isto é, pode referir-se mais ao que idealmente desejaríamos do que ao que
de fato é desejado por nós no momento presente. De outra forma, um adolescente
louco de amor que quer suicidar-se não teria direito à vida. Todavia, até que
cheguemos a ter desejos de algum tipo, cuja realização exija não sermos mortos,
ainda não temos direito à vida. O feto humano não pode ter desejos conscientes
antes do momento em que tenha organizada a atividade elétrica cerebral (BOONIN
2003, p. 126). Boonin afirma que desejos conscientes podem começar cerca de 25
a 32 semanas depois da fecundação (2003, p. 127). Todavia, esse critério parece
ser problemático.
A título de exemplo, os budistas
creem ser possível extinguir todo desejo e todo anseio. Se um ser humano
atingir essa meta, na perspectiva budista, terá alcançado o Nirvana, mais do
ponto de vista de Boonin, não terá mais direito à vida, pois tal ser humano, o
budista-modelo, não teria desejo de futuro. Similarmente, considerem um outro
caso: Chuck, construtor, 30 anos, sobe as escadas de sua casa enquanto segura
uma pistola de pregos. Repentinamente, ele tropeça e dispara um prego direto no
crânio. Espantosamente, Chuck não morre. Os cirurgiões removem o prego de seu
crânio. Após o período de recuperação, Chuck deixa o hospital. Continua a vida
como antes, mas nota que não mais deseja coisa alguma. O que aconteceu foi que
o prego feriu precisamente a parte de seu cérebro que processa sentimentos e
desejos. Chuck sofre de uma patologia neurológica, todavia, seria absurdo
alegar que ele não teria mais direito à vida.
11 O Critério da Viabilidade
Como utilizado pela Suprema Corte dos
Estados Unidos, o referido critério consiste no ponto em que o ser humano no
útero é potencialmente capaz de viver fora do ventre materno, ainda que com
ajuda artificial. A capacidade de sobrevivência fora do ventre materno
sinaliza, portanto, a encruzilhada em que o Estado poderia começar a pôr fora
de lei o aborto em algumas circunstâncias. Ora, por que a viabilidade é tão
importante? Ela marca o momento em que o feto chega à possibilidade de viver
fora do ventre e, assim, o começo de vida autônoma em termos de direitos
humanos.
Tooley aponta que há inúmeras razões
para rejeitar a viabilidade como forma de distinguir pessoas de meros seres
humanos (1972, p.51). Se o feto humano pudesse aprender uma língua –
considerando que o uso da linguagem é condição necessária e suficiente de
pessoalidade – então o ser humano falante no útero seria pessoa. Nesse sentido,
a dependência fisiológica não parece ter qualquer relação com a pessoalidade.
Tooley também nota que gêmeos siameses
às vezes dependem um do outro para a vida toda e, assim mesmo, considera-se que
ambos são pessoas. Outros filósofos também rejeitam a viabilidade como padrão
por causa de estudos que revelaram que fetos africanos se tornam viáveis mais
depressa que latinos, e latinos mais rápido que brancos (ALEXANDER et al.
2003). Isso significa passar pelo embaraço de dizer que critérios raciais e
sexuais têm peso na pessoalidade. De todo modo, Tooley e Singer sugerem – e com
razão – que a viabilidade é um caminho muito pobre para distinguir pessoas de
meros seres humanos.
12 O Critério do Movimento do Feto
A mexida é outra marca comumente
utilizada para distinguir não pessoas e pessoas humanas. Um argumento a favor
do movimento como critério se dá através da indicação da existência de um ser
vivo no seio da mãe. O movimento seria um dos princípios essenciais da vida.
Nesse sentido, segue-se que só quando o feto humano é capaz de gerar seu
próprio movimento começa a ter vida e peso moral. Em outras palavras, o
feticídio antes da mexida seria permissível, mas o aborto após a mexida não
seria admissível. Um segundo ponto ainda é levantado, sugerindo que, antes da
mexida, o feto humano é parte da mãe. Depois da mexida, o ser humano no útero é
independente da mãe como os movimentos independentes o mostra. Nesse sentido,
se o embrião ou o feto humano é simplesmente parte do corpo da mulher, segue-se
que se poderia equiparar ao apêndice, às amídalas ou, quem sabe, a um tumor.
Se o feto é mera parte do corpo da
mãe, o aborto faz parte do conjunto de outras intervenções voluntárias no corpo
humano, como prótese nos seios, redução, obturação de dentes, plástica no
nariz, alisamento de rugas, entre outros procedimentos. Se o feto humano é
simplesmente parte do corpo da mulher, então não há problemas em abortar.
Todavia, uma dificuldade com essa visão é que é difícil reconciliá-la com
intuições amplamente tidas sobre seres que merecem respeito. Adultos
paralisados, como Stephen Hawking, podem não se mover, mas parece que ainda têm
direito à vida. Por outro lado, máquinas podem se mover, mas não se presume que
devam ter direito à vida. Em todo caso, se o simples movimento autônomo é
essencial para se ter direito a não ser morto, segue-se que o feto humano tem
esse direito já vários meses antes de nascer.
Em seguimento, a visão de que o feto
humano é parte da mãe enfrenta sérias objeções. Frequentemente, acontece que o
feto tem tipo sanguíneo diferente do materno, cor diferente de olhos ou sexo
diferente do da mãe. O feto humano sempre tem código genético diverso da mãe.
Esses fatores indicam que o feto humano nunca é bem outra parte da mãe. Esse
mesmo critério, quando verificado mais a fundo, nos leva a absurdos e bizarrices:
se o feto é mera parte da mãe, poder-se-ia dizer, sem problema algum, que
mulheres grávidas tem quatro pés, quatro mãos, duas cabeças (no caso de gêmeas,
três), dois sexos e outros absurdos mais. Mesmo excluindo esses fatores, estar
dentro de algo não é ser parte desse algo, do mesmo modo que “um bebê de tubo
de ensaio” não é parte da placa de Petri. Finalmente, também pode ocorrer que o
feto humano morra e a mãe viva independentemente por muitos anos. A morte da
mãe não é a morte do feto, e vice-versa. Em conclusão, os argumentos baseados
nessa crença, não são sequer válidos, embora sejam constantemente (e
surpreendentemente) levados à mesa em debates populares.
13 O Critério da Sensibilidade
Segundo alguns filósofos, com a
capacidade de sentir – de sofrer dor ou gostar do prazer – é que um ser começa
a ter interesses. Nesse sentido, se os interesses e direitos se interligam, a
capacidade de sentir marcaria o começo do direito à vida. Ronald Green pensa
que a capacidade de sentir surge ao redor, talvez, de 30 a 35 semanas da
concepção, umas poucas semanas antes do parto de pleno termo. Seja como for,
ele concede que após a formação do cérebro frontal, médio e posterior não se
pode excluir a capacidade de sentir (GREEN 2001, p. 42). A sensciência é
diretamente dependente do cérebro. 5 semanas após a concepção, o feto
desenvolve um córtex cerebral profundamente convoluto.
Embora haja debates sobre quando o
feto é capaz de sentir, a importância da capacidade de sentir é sublinhada por
qualquer visão que a liga a interesses, e este a direitos. Uma vez que a
capacidade de sentir começa, seja na décima ou na trigésima semana, o mero ser
humano se torna pessoa humana com direito à vida. Todavia, por que experimentar
dor e prazer é tão importante para se ter direitos? Como poderia o valor moral
de um ente depender de sua capacidade de sentir? Ora, o feto humano – se não se
acabar com ele – é obviamente um ser que vai experienciar prazer no futuro,
assim, há razões para se opor ao aborto ao longo da gestação e ao infanticídio.
Poder-se-ia argumentar dizendo que o
que conta é a capacidade atual de sentir dor, e não a futura. Todavia, essa
argumentação exclui, mais uma vez, quem está sendo operado, anestesiado ou em
coma temporário. Ainda assim, se poderia assumir que a estrutura cerebral
exigida para sentir é o que realmente conta, e não o poder sentir, de fato. No
entanto, soa bem estranho e arbitrário escolher essa condição necessária para a
capacidade de sentir e não outra, igualmente necessária, como estar consciente
no momento, estar vivo ou a base genética para sentir. Embora, na capacidade de
sentir, frequentemente se veja um momento moralmente significativo no
desenvolvimento do ser humano, ela é uma qualidade partilhada por seres que
claramente não são pessoas, como sanguessugas, gafanhotos e marimbondos.
Certamente, não é crime usar inseticida contra vespas. Nesse sentido, parece
óbvio que a capacidade de sentir não fundamenta o direito à vida.
Eventualmente, poder-se-ia argumentar
é possível observar que nem todos os seres que sentem são igualmente capazes de
sentir, para evitar dar direitos iguais aos insetos. Nesse sentido, o aborto no
começo da gravidez não seria moralmente problemático porque o feto humano não é
capaz de sentir. Todavia, isso cria um espaço para a intuição de que quanto
mais tarde na gestação o feticídio se faz, mais problemático ele é, haja vista
que a capacidade de sentir, cresce à medida que a gravidez progride. Ainda
assim, isso explicaria o porquê de matar um ser humano é pior do que matar um
inseto. Os dois seres são capazes de sentir, mas não o são igualmente.
Diferirem
os graus de capacidade de sentir e de sofisticação mental torna razoável
conceder-se a alguns seres que sentem estatuto moral mais forte que a outros,
por exemplo, proteger vertebrados com mais cuidado que insetos, que parecem só
minimamente sensíveis e carentes de capacidades mentais mais sofisticadas
(WARREN 2000, p. 354).
Segundo Warren, quanto mais um ser
humano é capaz de sentir, mais valor moral ele tem. Todavia, a capacidade
humana de sentir não parece se restringir à gestação. Ao passo que um mestre de
kung fu pode pôr suas mãos no fogo e aguentar a dor, uma princesinha de contos
de fadas não pode suportar um grão de milho debaixo de seus vários colchões. Do
mesmo modo, muitos homens não podem aguentar o mínimo desconforto, ao passo que
muitas mulheres enfrentam o parto sem anestesia. Alguns ferimentos e doenças
reduzem grandemente a capacidade de sentir dor, e isso nos leva a concluir que
eles diferem radicalmente em termos de pessoalidade.
Se graus de sensação de dor e prazer
dão origem a uma espécie de graus de direitos, segue-se não apenas que nem
todos os seres humanos são iguais, mas que tampouco todas as pessoas humanas o
são. Na realidade, não existem duas pessoas humanas com capacidades idênticas
para dor e o prazer, haja vista que nossas experiências parecem ser
condicionadas por experiências anteriores, crenças e hábitos culturais. Em
conclusão, essa versão do argumento da sensibilidade solapa os direitos iguais
para todos. Factualmente, a capacidade de sentir dor em nada parece necessário
para se ter interesses e direitos.
A título de exemplo, o ideal estoico
era tornarmo-nos imunes às emoções humanas. Ora, se alguém fosse bem-sucedido
nisso, teria seu direito à vida ceifado? Claro que se poderia utilizar o termo
“sentir” com significados diferentes, a saber, como ter sensações auditivas e
visuais. Todavia, ninguém discordaria que seres humanos cegos ou surdos sejam,
de fato, pessoas. Não obstante, existem ainda pessoas impossibilitadas,
geneticamente, de sentir dor – a saber, a síndrome de Riley-Day. Embora rara, soa
absurdo alegar que seus portadores não são dignos de respeito, nem deveriam ter
direito à vida, mesmo que também fossem cegos, surdos e insensíveis ao prazer.
Em suma, a capacidade de sentir também se mostra como um frágil marcador para a
pessoalidade.
14 O Critério da Aparência Humana
Há quem utilize ainda o critério da
aparência humana. Fetos humanos, no começo, e embriões, não têm bocas, narizes,
olhos ou braços. Nesse sentido, não há qualquer semelhança com um ser humano
desenvolvido. Nas palavras de Roger Wertheimer:
É um
borrão amorfo de protoplasma aparentemente coagulado. Não tem olhos ou ouvidos,
nem nada de cabeça. Não anda, não fala; você não pode vesti-lo nem lhe dar
banho. Ora, não se qualifica nem como uma boneca Barbie (1971, p. 74).
O reconhecimento que os seres humanos
têm para com seus semelhantes seria, portanto, fundamental em determinar seu
comportamento. Todavia, quando a aparência do feto humano é adequadamente
humana? Novamente, isso é altamente controverso. Talvez, ocorra no primeiro
trimestre, ou talvez só perto do fim da gravidez. De qualquer maneira, uma
vítima de queimadura com sua aparência repelente ou sequer imediatamente
reconhecível como humana, tem o seu direito à vida assegurado tal como qualquer
modelo da Victoria’s Secret. Do mesmo modo, o homem com o rosto destruído pelo
câncer, o leproso, a líder de torcida e a miss universo têm igual direito de
não serem mortos. Em conclusão, devemos basear nossos julgamentos éticos não em
aparências, mas na própria realidade.
Aqui, poder-se-ia ainda estender-se a
um critério de aparência de estatura. O tamanho do embrião humano ou zigoto
define o seu peso moral? Alguém pode, honestamente, crer que algumas células –
um punhado delas – são um ser humano? Aparentemente, sim. Da perspectiva
biológica, o tamanho do ser não importa para determinar a que espécie ele
pertence. Certamente, um recém-nascido é menor que um menino de 10 anos, que,
por sua vez, é menor que um adulto. Todavia, cada um destes é verdadeiramente
uma pessoa. Ninguém, em sã consciência, afirma que gigantes sejam mais
plenamente humanos, e assim é difícil de ver porque o tamanho deveria ser
decisivo quando se consideram seres pequenos. Se, por ventura, adultos fossem
encolhidos a um tamanho pequeno, ninguém lhes negaria direito à vida. Nesse
sentido, o tamanho parece ser completamente irrelevante para a pessoalidade.
15 O Critério do Desenvolvimento Cerebral
Segundo Baruch Brody, não se pode ser
biologicamente humano sem se possuir um cérebro. Nesse sentido, se não há
cérebro ativo, não há ser humano, e, consequentemente, nem pessoa humana
(1975). Assim sendo, até o desenvolvimento do cérebro, ainda no primeiro
trimestre, o feto humano não teria direito algum. Ora, por que o cérebro é
característica essencial da pessoa humana? Segundo Boonin, assim como remover
um dos três lados de uma figura faz que deixe de ser triângulo e ajuntar um
terceiro lado à figura de dois lados faz dela um triângulo, semelhantemente,
morremos como pessoa humana quando o cérebro morre e começamos a vida pessoal
quando o cérebro começa a atuar (SAVULESCU 2002). Será que a morte cerebral total é
critério da morte do ser humano? Segundo o neurologista D. Alan Shewmon:
A lógica
hegemônica para igualar morte cerebral com morte pessoal é que o cérebro dá
unidade integradora ao corpo, transformando-o de mero conjunto de órgãos e
tecidos em organismo como um todo. Em apoio a essa conclusão, frequentemente,
se cita a impressionante lista de miríade de funções integradoras do cérebro.
Em exame mais meticuloso e depois da definição operacional de termos, de qualquer
modo, se descobre que, em sua maioria, as funções integradoras do cérebro não
são na realidade somaticamente integradoras e, reciprocamente, em sua maioria,
as funções somaticamente integradoras do corpo não são mediadas pelo cérebro.
Com respeito à vitalidade do nível do organismo, o papel do cérebro é mais
harmonizador do que constitutivo, melhorando a qualidade e o potencial de
sobrevivência de um organismo que se pressupõe vivo. A unidade integradora de
um organismo complexo inerentemente não se pode localizar, é feição holística
empenhando a interação mútua entre partes, não coordenação de cima para baixo
ditada por uma parte sobre a multiplicidade passiva de outras partes. A perda
da unidade integradora somática não é razão que se possa alegar fisiologicamente
para igualar morte cerebral com morte do organismo como um todo (2001, p. 457).
Ainda que a morte cerebral seja o
meio legal para determinar a morte, ela não parece ser um bom caminho para
indicar quando começa a vida pessoal. Stephen Schwarz cita que se usa a morte
cerebral como critério para determinar a morte da pessoa porque o ser humano
não vai mais poder atuar como pessoa no futuro. Por outro lado, se há
potencialidade para a atividade humana, o caso parece ser muito diferente. Se o
cérebro apenas temporariamente não está funcionando adequadamente e o ser
humano vai ser capaz de desabrochar no futuro, não ocorreu morte cerebral. Esse
é precisamente o caso do feto ou embrião humano. A ausência de atividade não é
permanente, mas temporária, por falta de amadurecimento. Assim, o status fetal
é similar ao coma temporário.
Não obstante, se o cérebro é critério
para a pessoalidade, minhocas, vespas e formigas seriam contempladas como
pessoas, mas dificilmente alguém as contará como sendo-as. Ainda assim, o
desenvolvimento do cérebro parece se estender à infância. Logo, se o critério é
o total desenvolvimento do cérebro, o infanticídio está, mais uma vez,
justificado.
16 O Critério da Implantação
O critério da implantação consiste no
aninhamento do embrião à parede do útero. Muitas vezes, a clonagem reprodutiva
cria um embrião humano visando implantá-lo no útero da mulher. Nesse sentido,
se a pessoalidade humana começa com a implantação, a clonagem terapêutica seria
admissível, embora destrua um embrião humano. Ora, por que a implantação seria
importante? Segundo Nathanson:
Bioquimicamente
é quando alfa [o zigoto humano] anuncia sua presença como parte da comunidade
humana por meio de sua mensagem hormonal que agora já temos tecnologia de
captar. Também sabemos bioquimicamente que ele é um organismo distinto do de
sua mãe (1979, p. 216).
Por séculos, o critério para a
chegada do embrião foi a mexida. Todavia, com o advento da tecnologia, isso
mudou. De todo modo, agora é possível constatar a gravidez a partir da
implantação. O critério da implantação pareceria permitir o aborto apenas nos
estágios muito iniciais da gravidez, bem como legitimar abortos por meio de
pílulas de controle de natalidade. Todavia, a implantação no útero marca o
começo da pessoalidade, já que somente na implantação se pode detectar o
embrião pela tecnologia atual?
Ironicamente (porque usualmente se
diz que estar ligado à mãe faz do ser humano no útero uma não pessoa), o
critério adotado requer que o feto não esteja ligado à progenitora. De qualquer
maneira, a implantação parece não ser critério suficiente par a pessoalidade.
Se úteros artificiais se tornarem realidade, será possível um ser humano se
desenvolver da concepção ao nascimento sem estar ligado a uma mãe. Por
consequência lógica, crianças que se desenvolverem dessa maneira jamais
atingiriam a pessoalidade.
Um problema adicional com a
implantação é a inclusão excessiva. Se a implantação no útero constitui
pessoalidade, temos de estendê-la a muitos animais, como ratos, que desenvolvem
suas crias no útero. Poder-se-ia dizer, claro, que isso não significa nada,
pois são embriões de “ratas”, e não humanos. Todavia, isso é atribuir significado
moral decisivo a ser membro da espécie Homo
sapiens, e isso é justamente o que a convenção pró-escolha quer evitar.
17 Todos os Seres humanos são Pessoas?
Todos os seres humanos são pessoas?
Essa pergunta tem, ao menos, dois desdobramentos. O primeiro moral e o segundo
biológico. Quase todos concordam que sim. Se não há diferença ética relevante
entre eu e você, então parece injusto nós sermos tratados como pessoas e o
outro não. Se os critérios apresentados ao longo desse artigo falham, então não
parece haver diferença ética relevante entre seres humanos em diversas etapas
de desenvolvimento em que alguns seres humanos não seriam pessoas. Se a dignidade
e o valor moral da pessoa humana não começam depois do nascimento, nem no
nascimento, nem em algum momento durante a gestação, então a pessoalidade
humana começa na concepção. Daí, conclui-se que todos os seres humanos são
também pessoas humanas.
Alguns questionam essa visão da seguinte
maneira: “afirmar a superioridade de nosso conjunto, definido quer por pertença
à espécie, raça, gênero, nacionalidade ou religião, parece não só
injustificado, mas injustificável (HARRIS, HOLM 2003, p. 119). De certa forma,
na visão dos objetores, falar em dignidade humana é cair na falácia do
Especismo. Todavia, essa objeção se funda em duas confusões: a primeira parece
ser meramente linguística. É verdade que racismo e sexismo são ruins, mas daí
não se pode simplesmente atribuir “ismo” a toda classe de características para
criar um marco moralmente ilegítimo. Afinal, os defensores do aborto endossam,
a título de exemplo, a sensciência.
Em segundo lugar, mesmo que o
Especismo fosse eticamente problemático, o compromisso com a dignidade de todos
os seres humanos não implica em negar a dignidade de qualquer outro grupo de
seres simplesmente por não serem humanos. Em outras palavras, não se diz que
somente humanos são valiosos. A crença de que todos os seres humanos são dignos
simplesmente não compromete a ideia de que apenas seres humanos tenham
dignidade e direitos. A natureza humana é condição suficiente, mas não
necessária para ter direitos.
18 As Teorias da Pessoalidade
A pergunta colocada no tópico
anterior persiste e é extremamente importante. De fato, responde-la parece
pressupor, em alguma medida, uma teoria da pessoalidade. A princípio, existem
duas teorias correntes: o dom e a realização. De acordo com a primeira,
cada ser tem valor moral inerente simplesmente em força de ser o que é. Por
dom, entende-se que o ser em pauta tem uma orientação intrínseca para a
atividade auto expressiva (CLARKE 1995, p. 105). São seres com dons que os
orientam para valores morais, como racionalidade, autonomia, respeito e,
através desses, se incluem como membros da comunidade moral. A segunda teoria
nega isso e sustenta que se deve prestar respeito a um ser se, e somente se,
esse ser funciona de determinada maneira.
No que tange aos seres humanos, a
visão do dom parece ser inclusiva, ao passo que a ótica da realização aparenta
ser exclusiva. De acordo com a primeira, todos os seres humanos, sem se olhar
qualquer consideração, têm igual dignidade fundamental pela qual se lhes deve
respeito. De acordo com a segunda, nem todos os seres humanos merecem respeito,
nem participam da dignidade fundamental, mas somente os seres humanos
portadores de certas características particulares. Não obstante, a visão
exclusiva não especifica quantas e quais características geram pessoalidade. De
fato, parece haver pouco acordo sobre quais características constituem a
pessoalidade. Não obstante, em meio a tanta divergência – estética,
desejabilidade, produtividade, atividade, cerebral, linguagem, idade, saúde,
religião, raça, fertilidade – os critérios parecem servir muito bem não somente
ao aborto, mas também ao infanticídio.
Ainda assim, a referida visão parece
pressupor que seres humanos diferem amplamente em graus, sendo mais ou menos
inteligentes, capazes mais ou menos de sentir, mais ou menos desenvolvidos
fisicamente, mais ou menos independentes, mais ou menos autoconscientes e mais
ou menos queridos pelos outros. Obviamente, isso exclui boa parte dos seres
humanos da pessoalidade. De qualquer maneira, a visão exclusiva nega que todos
os seres humanos tenham sido criados iguais e dotados com certos direitos
inalienáveis. Ora, como se poderia chegar à conclusão de que todas as pessoas
são fundamentalmente iguais se partilham de forma desigual do atributo ou dos
atributos que fundamentam a pessoalidade?
Além de não sustentar, a título de
exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a visão de realização não
só parece dividir os seres humanos uns contra os outros, mas separa as pessoas
entre elas. Se a capacidade de sentir dá origem aos direitos e nem todas as
pessoas têm a mesma capacidade de sentir, segue-se que nem todas as pessoas
gozam igualmente de direitos. Aceitar a visão de realização parece ser incoerente
até mesmo com a afirmação de que todos são iguais perante a lei, ou moralmente
iguais, a não ser por um decreto arbitrário que também se pode negar
arbitrariamente. Muitos defensores do aborto reconhecem o grave problema, por
exemplo, McMahan:
Tudo isso
me deixa profundamente desconfortável. Parece virtualmente impensável
abandonarmos nossos compromissos igualitários ou mesmo aceitar que só se
justifiquem de forma indireta – por exemplo porque, consideradas todas as
coisas, no fundo é melhor tratar todos como iguais e inculcar a crença de que
somos todos moralmente iguais, embora realmente não o sejamos. No entanto, os
desafios à tese da imoralidade igual, elemento central da moralidade liberal
igualitária, dão base ao ceticismo sobre a compatibilidade de nossas crenças
igualitárias tudo ou nada, com o fato de serem realidades graduais todas as
propriedades sobre as quais aparece se construindo o nosso estatuto moral. É
difícil evitar o sentimento de que nossos compromissos igualitários se fundam
em bases aflitivamente inseguras (2008, p. 104).
O próprio McMahan reconhece,
portanto, a implacável discriminação política e social que surge ao se negar a
igualdade fundamental de um grupo de pessoas humanas. Em contrapartida, a visão
do dom se aplica igualmente a todos os seres humanos, que, a despeito de suas
diferenças, permanecem orientados para razão e liberdade, mesmo quando essa
orientação não tem como ser expressada (por imaturidade, doença, sono,
deficiência e outros). Ser orientado para razão e liberdade é ter o próprio
florescimento e gozar de bens inalienáveis como a amizade e o conhecimento da
verdade. Se cada ser humano é reconhecido como pessoa com base simplesmente no
dom pessoal, então também se evita o problema em que a pessoalidade, de alguma
maneira bem estranha, vai e vem.
Se entendemos uma pessoa como membro
de um conjunto de seres racionais e livres, todos os problemas abordados até
aqui desaparecem. A leitura do dom não é uma visão religiosa confessional, mas
está antes implícita na medicina (vide o conceito de patologia). Patologia é
incapacidade, inadequação ou falha em realizar uma disposição que, nas
circunstâncias relevantes, pode e deve ser realizada, dada a dotação do ser em
pauta. Pássaros não podem falar, mas nem por isso estão sofrendo de patologia.
Um ser humano que, devido a um acidente, não pode falar, está sofrendo de
patologia física ou mental. Nesse sentido, a medicina apela e tem apelado para
dons que um determinado ser pode e deve ser capaz de atuar, dadas as condições
requeridas.
À luz da teoria do dom, incorre-se em
violação de direitos quando alguém, intencionalmente, dificulta o desabrochar
humano. Matar você impede seu desabrochar porque estar vivo é necessário para
fazê-lo, e faz parte do seu florescimento. Assim, é ruim matar você. Assim, é
ruim matar qualquer outro ser que partilha um florescimento como o seu. Essa
norma então excluiria a morte intencional de todos os seres humanos inocentes e
de todo outro ser que partilha um florescimento como o seu.
19 Quando nos Tornamos Humanos?
Embora já tenhamos respondido à
questão da pessoalidade, resta saber como isso se aplica à questão do aborto.
Logo, a questão titular do tópico surge. Faz-se necessário clarificar que essa
questão não é moral (como a questão da pessoalidade), mas estritamente
científica. Nesse sentido, por força metodológica, a resposta será igualmente
empírica. A rigor, existem inúmeros biólogos, cientistas em geral e médicos que
nos muniram com respostas claras à pergunta do tópico. Consideremos algumas
delas:
A
formação, a maturação e o encontro de células sexuais masculinas e femininas
são preliminares de sua união atual, numa célula combinada ou zigoto, que
definitivamente marca o início de novo indivíduo. Essa penetração do óvulo pelo
espermatozoide e o se juntarem e combinarem seus respectivos núcleos constitui
o processo da fertilização (AREY 1974,
p. 55)
Zigoto.
Essa célula é o começo de um ser humano, resulta da fertilização de um óvulo
pelo esperma. A expressão “óvulo fertilizado” se refere ao zigoto (MOORE 1987,
p. 9).
A vida
embrional começa com a fertilização e daqui o começo daquele processo se poder
tomar como ponto de partida do estágio I (LARSEN 1993, p. 19).
Médicos,
biólogos e outros cientistas concordam em que a concepção marca o início da
vida de um ser humano – ser vivo e membro da espécie humana. O consenso é
incontrastável nesse ponto em escritos médicos, biológicos e científicos sem
conta (apud ALCORN 2000, p. 55. Lei 158 do Senado dos Estados Unidos da
América).
A descontinuidade radical ocorre ao
se completar a fertilização, porque é então que um novo ser com 46 cromossomos,
que antes não existiu, por primeiro agora vem à existência, e os gametas
individuais – o óvulo com 23 cromossomos e o espermatozoide com outros 23 –
cessam de existir. O embrião humano é classificado de forma própria como ser
humano individual, e não como coleção de células humanas, um membro do grupo Homo sapiens, e não simplesmente um
punhado de células de origem humana (CONDIC 2003, p. 52). Em suma, o embrião
humano é um todo, organismo completo, ser humano individual vivo cujas células
trabalham juntas num esforço cooperativo de autodesenvolvimento para a
maturidade. Se todos os seres humanos são pessoas, então o embrião humano é,
definitivamente, uma pessoa.
20 O Argumento da Propriedade Constitutiva
O filósofo americano Christopher
Kaczor elabora um argumento filosófico, em favor da vida, com base na
pessoalidade (KACZOR, p. 102):
P1: Se um ser individual tem uma propriedade
constitutiva em um ponto do tempo, segue-se que tem aquela propriedade em cada
ponto de sua existência.
P2: Você é o mesmo ser vivo individual ou organismo
que o zigoto do qual você se desenvolveu.
P3: Você é constitutivamente uma pessoa humana.
C: O zigoto de que você se desenvolveu era pessoa
humana.
Kaczor deixa claro que não há nada de especial nesse argumento que o
faça aplicar-se só a você e não a cada outro ser humano. Seu intuito parece ser
mostrar que cada feto humano é também pessoa humana. Ele começa demostrando que
P1 é uma verdade por definição, haja vista que o que X tem constitutivamente,
tem sempre que ser uma característica de X, do contrário, não seria
característica constitutiva, mas acidental. Ele exemplifica que triângulos
constitutivamente têm que ter três lados. Se uma figura não tem três lados, não
é triângulo, ou não mais é. Assim, se uma figura é um triângulo,
necessariamente, deve ter três lados desde o começo. Um exemplo de propriedade
acidental seria um triângulo cujos lados tenham o mesmo tamanho (alguns
triângulos têm lados iguais, outros não).
Estabelecida a verdade de P1, o que
Kaczor diz sobre P2? Você é o mesmo agora, com 10 dias de vida, com 10 anos de
vida e em todos os estágios de sua vida? Parece sensato afirmar que se você
sofre um ferimento permanente enquanto feto, futuramente, sofrerá por conta
desse mesmo dano causado ainda no útero. Alguns filósofos, como Singer,
disputam P2 dizendo que a continuidade como pessoa é mental-dependente. Em
outras palavras, a concepção de identidade pessoal supõe que “eu” sou apenas
meus conceitos, memórias, pensamentos, mas não minha realidade corporal. No
entanto, parecem haver boas razões para se negar isso.
Se você acordasse amanhã com
personalidade e memórias diferentes, os outros não concluiriam que você era
outra pessoa, porém mais que você é a mesma de antes sofrendo de uma doença
mental de algum tipo. Se a explicação proposta por Singer for verdadeira, então
um agressor, ao atacar o corpo de uma pessoa por estupro, tortura ou mutilação,
o agressor não estaria realmente fazendo mal a uma pessoa que é apenas “o
espírito dentro da máquina”. Somente constituiria um dano àquilo que se
consideraria propriedade da pessoa. No entanto, é evidente que estupros e
mutilações fazem danos diretos às pessoas, mesmo que elas não se lembrem de
nada. Intuições como essas apontam para a conclusão de que nós somos, e não
simplesmente usamos nossos corpos.
Assim sendo, se P1 e P2 são verdade,
tudo o que resta a demonstrar é P3: você é constitutiva ou essencialmente
pessoa. Se “pessoa” se define como “substância individual de natureza racional”
(Boécio) ou “ser dotado de liberdade, mesmo se não a exerce” (Kant), então P3
seria verdadeiro por definição, visto que o que se é por dotação ou natureza é
constitutivo do ser em questão. Se “pessoa” se define por membro de categoria racional
de ser, então também é o caso, você constitutivamente é pessoa. Ser membro
desse conjunto de seres (humanos) significa, portanto, ser pessoa. Nesse
sentido, somente se pode deixar de sê-lo se deixar de existir.
Boonin retruca P3 dizendo que, se seres
humanos em coma irreversível tem o mesmo direito à vida que você e eu, a pena
capital é sempre iníqua (BOONIN 2003, p.55; MARQUIS, 2007, p. 396). Logo,
aceitar P3 compromete com visões sobre eutanásia, suicídio assistido,
tratamento de seres humanos em coma questionáveis, inaceitáveis ou ao menos
inconsistentes com a posição de muitos que se opõem ao infanticídio. Todavia,
parece-me que quase todos os críticos do aborto também se opõem à eutanásia e
outras posições similares. Embora isso seja verdade, ainda há a relação causal
entre valores, tema este que será abordado no próximo tópico.
Em suma, o argumento da propriedade
constitutiva de Kaczor parece ser bem-sucedido em mostrar que cada ser humano é
pessoa. Se um ser individual tem uma propriedade constitutiva num ponto no
tempo, segue-se que tem aquela propriedade em todos os momentos da existência.
Você é constitutivamente, ontologicamente pessoa. Não obstante, você é o mesmo
ser humano vivo individual que o feto do qual você se desenvolveu. Assim,
segue-se que o feto do qual você se desenvolveu era pessoa, e como nada no
argumento depende de característica individual exclusiva sua, isso vale para
todo feto humano, corroborando assim a teoria do dom.
21 Um Embate de Direitos
É inegável que existem casos difíceis
de aborto, tais como deformidade fetal, estupro, incesto, risco de vida materna
e outros. Como tais, merecem as devidas considerações. Seria arrogante, de
fato, julgar as mulheres nas referidas circunstâncias e declará-las moralmente
indignas por verem o aborto como a única saída. Todavia, a não ser que se
conheça o entendimento e a intenção da pessoa em questão, nunca se pode fazer o
julgamento moral definitivo da culpabilidade ética.
Todavia, devemos ter em mente o
objeto central da discussão, que é o status antropológico do ser humano no
útero. Ora, a pessoalidade do feto não depende de modo algum da concepção no
seio da família boa ou miserável, de ser a mulher rica ou pobre, de se dar em
meio a grandes oportunidades ou em um momento de esperanças perdidas. Nesse
sentido, o argumento das circunstâncias não diminui ou atinge a pessoalidade de
qualquer modo. Warren escreve:
No melhor
dos casos, é moralmente questionável deixar matar seres humanos que têm direito
à vida simplesmente para evitar consequências ruins para outros seres humanos.
Seguramente, ninguém está autorizado a matar um ser humano inocente que nada
fez para ceder seu direito à vida ou o ter cassado (1998, p. 129).
Se o feto humano não é pessoa, nem se
precisa de circunstâncias ou justificativas para o aborto. Todavia, se ao feto
se atribui um status moral – mesmo de uma criança de 6 anos – as circunstâncias
difíceis não autorizam, em nenhuma hipótese o término de sua vida. Entre os que
afirmam a igualdade fundamental de todos os seres humanos é amplamente aceita a
ideia de que alguns abortos indiretos são justificados. A título de exemplo,
algumas mulheres utilizam o valor da liberdade sobre o direito à vida. No
entanto, em uma relação causal, esse embate parece tender ao último. Bernard
Nathanson argumenta:
Em moral,
a vida só pode ser equiparada com a vida, não com a conveniência, a sociologia,
a política, a economia, a pobreza, [...] ao argumentar em questão de vida só se
pode invocar razões de vida para contrabalançá-la (NATHANSON 1979, p. 240).
Salvar a vida da mãe é, portanto,
razão proporcional para deixar morrer um ser humano no útero, todavia, a
liberdade não parece ser. Em termos de relação causal, sem vida, não é possível
ter liberdade. O direito à vida parece, portanto, ser o alicerce de todos os
outros valores morais, pois condiciona o exercício destes. Em conclusão, as
situações difíceis não parecem ser suficientes para solapar o direito maior à
vida, inalienável a toda e qualquer pessoa humana.
22 Considerações Finais
Após uma vasta exposição crítica
sobre os argumentos pró-escolha, foi possível estabelecer que muitos destes, em
favor do aborto, parecem se encaixar perfeitamente na defesa do infanticídio. Do
mesmo modo, foi possível observar que sempre incorrem em critérios arbitrários
e excludentes, que solapam, injustificadamente, os direitos de seres humanos.
Não obstante, a teoria da realização parece estabelecer valores diferentes para
seres humanos, ao passo que se diz, contraditoriamente, que estes são iguais
perante a lei. À medida que valores diferentes são
dados aos seres humanos, tem-se uma hierarquia de tratamento e de direitos, o
que vai contra os princípios mais fundamentais da humanidade – dignidade e
igualdade – tão bem expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em
conclusão, se o feto é uma pessoa – como parece ser – o aborto passa a ter implicações
reais. Se o termo “assassinato” consiste em cessar deliberadamente a vida de
uma pessoa inocente, o aborto – por consequência lógica – passa a ser
assassinato, não importando as circunstâncias. Nesse sentido, casos como
assassinato de mulheres grávidas e o próprio aborto constituem graves violações
aos direitos inalienáveis do feto – e pessoa – humano.
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